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Comportamento

Maior lição de vida veio ao ser atropelada por um bonde, muito longe de casa

Adriano Fernandes | 29/02/2016 06:12
Sozinha e em um país distante, Letícia aprendeu uma das maiores lições de sua vida depois de um grave acidente.(Foto: Alan Nantes)
Sozinha e em um país distante, Letícia aprendeu uma das maiores lições de sua vida depois de um grave acidente.(Foto: Alan Nantes)

“Neste dia, há um ano eu morava em Budapeste. Era terça-feira e fazia muito frio. Tinha combinado de ir ao cinema com minhas novas amigas após a aula, mas não fui. Não pude ir. Fui atropelada por um ´tram` na saída da faculdade”.

O depoimento publicado no Facebook na última semana é da jovem Letícia Santos Assis, de 21 anos, para comemorar o primeiro ano de sua nova vida. No dia 24 de fevereiro de 2015, ela foi atropelada por um “tram”, como são chamados os bondes elétricos na cidade húngara.

Depois do acidente, Letícia afirma que deu inicio a uma nova vida. (Foto: Alan Nantes)
Depois do acidente, Letícia afirma que deu inicio a uma nova vida. (Foto: Alan Nantes)

Mas mesmo depois de ficar hospitalizada e praticamente sozinha em um país desconhecido, ela resume o episódio como o de seu renascimento. A partir do dia que poderia ter tido um desfecho trágico, Letícia deu continuidade ao que hoje ela define como o melhor ano de sua vida.

A jovem conta que o acidente aconteceu apenas três semanas depois de ter chegado a Budapeste. A viagem era o resultado de toda a dedicação que sempre teve aos estudos. Letícia aprendeu a falar inglês sozinha e aos 17 anos já tinha entrado na faculdade de direito da UFMS.

“Eu sempre me inscrevi em programas de intercâmbio, mas ainda buscava algo especifico para minha área de estudo. Foi quando surgiu a oportunidade de poder estudar direito internacional em Budapeste”, comenta.

Letícia passou por um processo de seleção, que entre outros critérios avalia o histórico escolar do candidato, exige carta de intenção e prova de fluência em inglês. Em junho de 2014 ela foi selecionada pelo programa Balassi Institute Scholarship para o intercambio de oito meses na renomada universidade Eötvös Loránd University, na Húngria.

A jovem durante recuperação no Hospital.(Foto: Arquivo Pessoal)
A jovem durante recuperação no Hospital.(Foto: Arquivo Pessoal)

No final de janeiro de 2015, ela embarcou para Hungria ao lado do namorado o também estudante, Filipe Minatel. “Ainda durante o processo de inscrição ele havia prometido que viajaria comigo caso eu passasse na seleção e foi o que fizemos. Ficamos algumas semanas viajando, até que ele se mudou para a Irlanda, para cursar inglês”, diz.

Com o dinheiro da bolsa de estudos da universidade, ela alugou um apartamento e foi morar sozinha. Naquele dia 24 a rotina de Letícia era a mesma das outras três semanas na faculdade. Até a distração ao atravessar a rua e o acidente. No impacto com o ´tram` Letícia detalha que foi lançada a alguns metros, mas a distância não impediu que o bonde elétrico parasse sobre ela. O momento exato do atropelamento em Astoria, cruzamento em frente a sua faculdade, ela descreve em detalhes.

De lesões após o acidente, Letícia tem apenas as cicatrizes na perna e no pescoço.(Foto: Alan Nantes)
De lesões após o acidente, Letícia tem apenas as cicatrizes na perna e no pescoço.(Foto: Alan Nantes)

“Eu não vi e nem ouvi nada. Quando acordei só via ferros. Não sabia onde estava, ouvia as pessoas falando húngaro, e só via pernas. Eu estava no chão e a temperatura era de uns 3 graus”, diz o trecho da postagem. Letícia explica que os momentos de tensão foram agravados pelo fato de que ela não entendia o húngaro.

“As pessoas falavam comigo e eu não podia responder porque eu simplesmente não sabia responder na língua deles. Até que um rapaz falou comigo em inglês. Movi meu braço e segurei a mão dele, enquanto ele repetia que a ambulância já estava vindo”, lembra. Atordoada, Letícia conta que perdeu a noção de tempo e as lembranças se resumem aos lapsos de memória do momento do salvamento até a chegada no hospital.

“Minha perna estava presa, então eles precisaram levantar o tram. No hospital, me lembro de assinar um documento que eu até hoje não sei do que era e de os médicos me avisarem da cirurgia”, conta. A operação de emergência de Letícia foi para conter as hemorragias internas, devido ao rompimento do baço, além dela também ter quebrado a clavícula. Letícia conta que os minutos antes da cirurgia foram um misto de medo e desespero.

“Eu enxerguei a morte de perto e naquele momento eu tinha a certeza que eu não ia sobreviver. E se eu tivesse morrido aos 20 anos? Ninguém está preparado para morrer, muito menos nessa idade e sozinha”, comenta.

Letícia e o namorado, durante uma das viagens na Europa.(Foto: Arquivo Pessoal)
Letícia e o namorado, durante uma das viagens na Europa.(Foto: Arquivo Pessoal)
Depois da recuperação Letícia e as amigas fizeram um tour por várias cidades da Europa.(Foto: Arquivo  Pessoal)
Depois da recuperação Letícia e as amigas fizeram um tour por várias cidades da Europa.(Foto: Arquivo Pessoal)

Mas tudo correu bem. Letícia passou por pelo menos duas cirurgias, num intervalo de cinco dias. Durante a recuperação, que foi bancada pelo seguro do intercâmbio, ela teve a certeza de que, além de estar viva e bem fisicamente, algo tinha mudado. “Eu estabeleci aquele acidente como um marco na minha vida. Um divisor de águas que tinha me feito outra pessoa. Eu passei a ter a certeza de que eu ia viver”, comenta.

No dia seguinte ao acidente, Felipe já estava em Budapeste para ficar ao lado da namorada, enquanto os pais tentavam organizar a viagem para a Hungria. Dos dez dias que ficou em recuperação, ela se recorda das situações curiosas de ter ficado internada.

“Durante o dia, o Felipe ainda ficava comigo, mas em Budapeste paciente fica sozinho durante a noite. Uma enfermeira que falava inglês teve que criar um dicionário improvisado em húngaro para mim poder falar com as outras enfermeiras do turno da noite”, ri.

Letícia conta que recebeu o apoio de familiares de amigos e colegas de faculdade, durante todo o tempo que ficou no hospital. Das surpresas do período de internação, ela diz que a maior foi receber a visita do rapaz que deu a mão para Letícia depois do acidente. “Ele se tornou uma pessoa muito especial para mim porque no momento mais difícil da minha vida, ele estava lá. E ainda fez questão de procurar em todos os hospitais de Budapeste, até me encontrar”, comemora.

Letícia brinca que ficou conhecida entre os amigos como a “tram girl”. “A garota que sobreviveu depois de ser atropelada por um ´tram`. "Mas foi esse tipo de apoio que me deu força. Até mesmo eu brinco que uma parte de mim ficou, literalmente em Budapeste”, ri. Além das cicatrizes no pescoço e na perna, ela não ficou com mais nenhuma sequela devido ao acidente.

Letícia trouxe de Budapeste um quadro ilustrando um "tram" semelhante ao que te atropelou.(Foto: Alan Nantes)
Letícia trouxe de Budapeste um quadro ilustrando um "tram" semelhante ao que te atropelou.(Foto: Alan Nantes)

Doze dias depois do tratamento, quando Letícia já tinha tido alta a mãe enfim chegava para ajudar nos cuidados da jovem. Mas a única certeza que ela tinha era de que não iria voltar para o Brasil. “Meus pais sempre respeitaram as minhas escolhas e minha mãe percebeu que eu tinha condições de ficar. Eles entenderam que eu seria uma pessoa frustrada se eu tivesse voltado. Eu não podia simplesmente ter vivido três semanas do meu sonho para voltar para o Brasil”, desabafa.

Depois dos quarenta dias de recuperação, Letícia voltou ao intercâmbio e também à nova vida que começou a partir do acidente. “Eu passei a querer sair mais, viajei por várias cidades e países da Europa, sair com meus amigos. Aprendi a aproveitar, tanto o intercâmbio como minha própria vida, de uma forma que eu não teria aproveitado ou feito tudo que eu fiz, senão tivesse sofrido o acidente”, ela diz.

Antes e Depois – Letícia é enfática ao ressaltar que em momento algum se viu como vitima ou teve pena de si mesma. Mas admite que era uma menina que se transformou em mulher. “A Letícia de antes nunca se imaginaria numa situação dessas. Eu só pensava em estudar, ter uma carreira bem sucedida, ter dinheiro, mais do que adianta tudo isso se, do nada, você pode perder? Se ver numa cama de hospital, sozinha, longe dos pais e dependendo de pessoas que nem falam sua língua?”, observa.

Ela conta que o trauma nunca existiu e até voltou a andar nos bondes do cruzamento onde foi atropelada. De lembranças só restaram as boas e a imagem de um “tram” que ela fez questão de trazer nas malas.

“Quando eu penso no meu intercâmbio a última coisa que eu me lembro é do meu acidente. Eu vivi tanta coisa boa, conheci tanta coisa diferente. Eu precisava passar por tudo isso, para aprender o valor da vida e a viver”, conclui.

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