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Comportamento

Na cidade onde o povo tem fama de mal educado, difícil é trabalhar com pesquisa

Elverson Cardozo | 13/01/2014 06:20
Nas ruas, Karine enfrenta encontra resistência, mas "dribla" os perrengues com maestria. (Foto: Elverson Cardozo)
Nas ruas, Karine enfrenta encontra resistência, mas "dribla" os perrengues com maestria. (Foto: Elverson Cardozo)

Uma cidade onde as pessoas tem fama de não serem receptivas com seus próprios visitantes e clientes seria benevolente com os pesquisadores? Na prática do jornalismo diário, trabalhando em Campo Grande, eu, enquanto repórter, já me acostumei às negativas em abordagens para matérias na rua. Imagine o sofrimento de quem vive com a prancheta na mão, todos os dias, pedindo “um minutinho de sua atenção”.

Pesquisadora há 7 anos, sempre trabalhando na Capital do Estado, Karina Augusto Mendes, de 31 anos, já está “calejada” dos “nãos” que recebe. Ela tem duas reclamações a fazer sobre a cidade. A primeira, bastante compreensível, diz respeito ao clima que, em alguns períodos, parece uma amostra grátis do inferno, ainda mais para quem precisa sair todos os dias.

O sol castiga, gera uma onda de protestos, mas o comportamento tipicamente campo-grandense ganha em disparada. “O pessoal é muito mal educado”, contou, sem pensar muito. A maioria não gosta de responder pesquisas, é verdade. Se existe alguém que acha o “passatempo” agradável deve ser exceção, com certeza. Mas custa ser educado? Em Campo Grande, parece que sim. Custa.

A expressão “estou com pressa” deve ser a desculpa oficial para fugir do questionário em qualquer parte do mundo, mas, por aqui, o “não” grosseiro, acompanhado do olhar torto e da cara de piedade parece código de conduta. Constatação de uma pesquisadora experiente.

“As pessoas não dão muito valor ao nosso trabalho. Olham com inferioridade, como se estivéssemos fazendo pesquisa porque estamos passando por necessidades. Às vezes vamos às casas e é comum ser atendida pela janela. Ficam gritando: ’Fala! O que é?'”

Em geral, esse comportamento mais hostil, digamos assim, parte das mulheres. Os homens, observou, “respondem melhor para mim que sou mulher”. No interior do Estado, o trabalho é menos complicado. Os moradores são mais humildes e chamam, inclusive, para entrar, tomar um café e até almoçar. Também existem, é claro, as almas caridosas que, mesmo sem paciência, param e dão atenção por entender que trata-se de um trabalho.

Pesquisador bom é pesquisador simpático, que sempre está com sorriso no rosto. (Foto: Elverson Cardozo)
Pesquisador bom é pesquisador simpático, que sempre está com sorriso no rosto. (Foto: Elverson Cardozo)

Técnicas para sobreviver no mercado - Quando o dia está “ruim”, o jeito é apelar para os truques que a profissão ensina com o tempo, na prática. Pesquisador bom é pesquisador simpático, que sempre está com sorriso no rosto. A voz mansa, calma, é um diferencial de mercado. Na Capital, se o profissional não tiver essa qualidade, dificilmente se mantém na ativa.

“Eu chego e falo: Oi, Bom dia! Você mora em Campo Grande? Pode responder uma pergunta para mim? É rapidinho”, conta. A identificação é essencial, mas, para ganhar tempo, Karina prefere se apresentar no final. “As pessoas hoje são muito práticas”, justifica.

Aquele lance de “o corpo fala” é verdade. “Um vez eu fui trabalhar com uma amiga. Ela fazia cara de cansada, de brava, e não conseguia entrevistar ninguém, enquanto eu terminava rapidão. Você tem que ter sorriso no rosto e convencer a pessoa”, ensina.

Quando a técnica falha, a beleza ajuda. Loira, de olhos verdes, a pesquisadora já recebeu muita cantada por aí, mas usou o charme em benefício profissional, garante. “Eu falo ‘obrigado’ e prossigo. Não sou tão bonita assim, mas acho que dá uma ajudinha”.

Perrengues – Vida de pesquisador não é fácil, embora o lucro, nas épocas das vacas gordas, em anos eleitorais, por exemplo, faz muita gente pensar em abandonar a carreira para tentar uma vaga. Na última eleição, Karina, com apenas dois meses de trabalho, conseguiu lucrar R$ 8 mil, fora a ajuda de custo que, geralmente, é de R$ 1 mil por 30 dias. Com o dinheiro ela comprou um carro seminovo, pagou as contas e ainda se divertiu. Nada mal.

Mas, antes do sucesso, vem o trabalho. Muito trabalho. É preciso enfrentar os perrengues na rua, explicar para os revoltados que não, você não trabalha com político, e estar disposto a sair cedo de casa e voltar apenas à noite, afinal de contas, metas precisam ser cumpridas.

A mulher entrevista, por dia, uma média de 90 a 100 pessoas e repete as mesmas perguntas de minuto em minuto. Na quinta abordagem ela já decorou o questionário todo. “Só que no final do expediente o tico e o teco já não funcionam mais e aí você acaba invertendo até as perguntas. Muda o questionário e continua falando a mesma coisa”.

E quando a pesquisa tem 50 páginas? Acontece. “Demora uma hora para responder. Você tem que dar um sorrisinho, virar a página discretamente e falar: ‘já está acabando’. Só que tem mais meia hora para acabar. Se a pessoa perguntar se demora a gente diz ‘só um pouquinho’. Se falar a verdade ninguém quer”.

Tem dias que, no meio do caminho, o pesquisador encontra alguém disposto a responder tudo, mas o sujeito é daquele tipo carente, com grande necessidade de falar da vida e da criação do universo. Pior que isso é perguntar uma coisa e ouvir uma resposta totalmente incoerente, do tipo: “O que você mais gosta de comer no almoço?” “Amarelo”, responde o entrevistado. Não dá.

Prancheta de anotações. Todo pesquisador tem um quê de jornalista. (Foto: Elverson Cardozo)
Prancheta de anotações. Todo pesquisador tem um quê de jornalista. (Foto: Elverson Cardozo)

Semelhanças profissionais - Depois do bate-papo com a pesquisadora Karina e das respostas concedidas a ela para o preenchimento de mais um questionário sobre “hábitos de consumo e vida”, cujo resultado, me garantiu, “será noticiado no Jornal Nacional”, eu, de crachá, com a mesma cara de pau para mais um “fala-povo” na Praça Ary Coelho, pedi seu telefone.

Precisava entrevistá-la para o Lado B. Fiz isso três dias depois. Conversamos bastante. Me diverti e fiquei com a sensação de que jornalista tem muito de pesquisador e o pesquisador é, no fundo, um jornalista que ainda não se encontrou. Antes de encerrar, no entanto, quis saber dos planos futuros da moça. Ela disse que a pesquisa se tornou um vício na vida dela, porque até hoje não conseguiu outro serviço que pudesse ganhar a mesma coisa. Mesmo assim, no ano que vem, pretende mudar de ramo.

“Quero cursar logística. Na verdade, quero fazer para passar em um concurso bom, que pede nível superior, e ganhar, pelo menos, R$ 5 mil, mas já pensei em ir para  área de comunicação. Não fui atrás, porque não sei qual o caminho certo”, comentou.

Talvez essa pesquisadora encontre o caminho e vire, no futuro, uma ótima jornalista. É uma escolha, uma vocação que deixa a gente feliz, apesar dos "perrengues", mas eu preciso dormir tranquilo, então, para não dizer que não avisei, deixo um recado:

Karina, comecei esse texto por volta das 16h e só terminei às 20h, duas horas depois do fim do meu expediente. Tive que bolar um título criativo, fazer legendas, escolher os melhores trechos de nossa conversa, ligar um assunto no outro, reler várias vezes, diagramar e deixar o material pronto para o editor revisar e publicar.

Mas antes, acredite, mudei o primeiro parágrafo umas três vezes. O último também. É verdade. No dia que nos falamos, no Centro, eu estava sozinho e, por isso, além de repórter, virei fotógrafo. Você notou, ? No final de mais um dia de trabalho, o meu tico e teco, assim como o seu, já não funcionam mais. Te entendo. Nossa profissão tem mesmo algo em comum, mas não é o salário. Lamento.

Ainda pensa em seguir carreira na área de comunicação? Daqui algum tempo, quem sabe, nos encontramos em uma coletiva de imprensa. Enquanto isso, força, a nós, para que possamos aguentar os mal educados de plantão.

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