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Comportamento

Sem endereço fixo, cigano de 3 anos ficou sem vacina: os paradoxos da vida livre

Paula Maciulevicius | 18/09/2013 06:39
Eles que carregam história, arte, cultura, costumes e tradição não são vistos e quando são, infelizmente, por maus olhos. (Fotos: Cleber Gellio)
Eles que carregam história, arte, cultura, costumes e tradição não são vistos e quando são, infelizmente, por maus olhos. (Fotos: Cleber Gellio)

A terra deles é o planeta. O teto é o universo e a religião pregada é, acima de tudo, a liberdade. O pensamento cigano é fruto da vida dinâmica que levam e que não pode parar. Está para nascer tribo que viva mais o desapego do que estes, que assimilam o que veem andanças afora, mas seguem em frente sem olhar para trás.

Ao contrário do que a gente venha a pensar sobre o futuro, eles têm a total confiança de que o amanhã lhes reservará o que for preciso, antes mesmo que a necessidade bata à porta. Fincar raízes seria lhes cortas as asas, estabelecer laços seria o mesmo que algemá-los. O presente e o futuro são vividos com os olhos na estrada que se abre aos pés ciganos conforme o desgastar dos passos.

No acampamento em Campo Grande, os mesmos personagens da história que o Lado B contou ontem, vivem a invisibilidade. Eles que carregam história, arte, cultura, costumes e tradição não são vistos e quando são, infelizmente, por maus olhos.

A descriminação existe, o preconceito também e não é de hoje. A cada terreno que chegam os “não” são as boas vindas que os moradores têm a oferecer. No entanto esta mesma tribo faz valer que cada um oferece o que tem. Não será isso que os fará ir embora. O tempo de permanência é curto, num calendário que para eles corre diferente.

“Aprendemos respeito, a nunca sair pedindo nas casas, o povo já liga para a prefeitura pra tirar a gente por nada”, diz Fábio Aristides, de 34 anos. Cigano rorahanin.

“A gente não quer ajuda, a gente quer que cumpram um pouco essa parte”, desabafa.
“A gente não quer ajuda, a gente quer que cumpram um pouco essa parte”, desabafa.

Aqui, onde estão há três meses, viveram o auge da descriminação. Fábio que é pai de uma das seis famílias que vivem no acampamento não conseguiu vacinar o filho menor, de 3 anos. Levou ao posto de saúde e a recepção foi negativa.

“A vacina do bebê eles não quiseram dar. Falaram que precisava de endereço, mas nós não temos, somos ciganos”, argumentou, em vão, porque voltou para casa sem o atendimento ao pequeno.

Fábio não pediu, não reivindicou, não chamou a imprensa para reclamar do atendimento na saúde. Talvez porque este não foi e nem seria o último não. No fim, ele continua a história como quem segue a caminhada e aceita brincar com os paradoxos que a vida traz a cada parada.

“Tem número da lei, uma cartilha dos ciganos, o pessoal não quer entender essas coisas. Eles não sabem que dentro da gente tem um coração...”.

À reportagem, Fábio pediu a cartilha para que ao menos possa fazer valer o que em lei lhes é garantido por direito. O documento chama “Povo Cigano, o direito em suas mãos”, lançado em 2008, com 29 reivindicações apresentadas em Conferências de Direitos Humanos e de Promoção da Igualdade Racial. O curioso é que o download dela é por áudio, seguindo à risca a cultura falada que é passada de geração em geração. “A gente não quer ajuda, a gente quer que cumpram um pouco essa parte”, ressalta o cigano.

O aprender a ler e escrever é feito muitas vezes debaixo de tenda. Esta que eles se restringem a poucas fotos. De lonas, na maioria azuis, eles tem debaixo delas fogão, uma pia improvisada, camas e as roupas que vestem e vendem em malas. Tudo muito limpo e arrumado, apesar do vento constante.

Como ciganos, a pátria é onde estão seus pés, que por ora, ainda é Campo Grande.
Como ciganos, a pátria é onde estão seus pés, que por ora, ainda é Campo Grande.

“Os ciganos põem se quer ou não, mas como não tem residência e viaja com a barraca, as crianças estudam em casa mesmo, eu nunca fui na escola, aprendi a ler e a escrever em casa e ensinei eles” fala Fábio sobre os filhos. Além do pequeno de 3, ele tem um maior, de 9 anos.

A cartilha estabelece que o ensino para as crianças deva ser pensado e discutido com as comunidades ciganas respeitando a tradição e a língua, sob responsabilidade do Estado e Município. O atendimento à saúde deve levar em conta o modo de vida e os costumes ciganos. O documento apresenta também como responsabilidade do Poder Público, assistência e saúde diferenciados, por meio de unidades móveis que possam não somente tratar, mas orientar e prevenir.

O terreno onde estão os ciganos não dispõem de água. O padrão de energia foi acrescido. No entanto, não há estrutura alguma para um acampamento. Nem lixos e banheiros, quando, pela lei, a Prefeitura é obrigada a destinar espaço adequado com infraestrutura para acampamentos ciganos.

“Água a gente pega no posto de gasolina ou dos vizinhos, conversa e paga eles. O banheiro a gente usa do posto. Aqui as pessoas são difíceis de ceder, é complicado. Então é só do posto mesmo. Eles não estão acostumados, mas muita gente apronta e eu não tiro a razão deles”, afirma a esposa de Fábio, Paola Aristides, de 29 anos.

Até então as casas não foram invadidas, desfeitas ou o que mais a maldade possa fazer.

O tempo corre e nem eles mesmos sabem precisar quanto tempo ainda vão ficar aqui. Como ciganos, eles nunca demonstraram o desejo de ter a própria cidade, a pátria é onde estão seus pés, que por ora, ainda é Campo Grande.

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