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Política

Família da ministra Tereza Cristina tem conflito histórico com índios em MS

Primas da ministra da Agricultura Tereza Cristina são proprietárias da Fazenda Esperança, em Aquidauana, que incide em território reivindicado como tradicional pelos índios Terena

Izabela Sanchez | 17/01/2019 11:12
Terenas de Taunay Ipegue em Aquidauana (Foto: Divulgação/MPF)
Terenas de Taunay Ipegue em Aquidauana (Foto: Divulgação/MPF)

Os terena viviam em Mato Grosso do Sul no século XIX e na região de Aquidauana, à época inexistente, e da emergente Vila de Miranda, forneciam todo tipo de produtos para a subsistência da região. Foi então que, em 1864, a Guerra do Paraguai mudou a rotina dos índios agricultores. Apesar de resistirem ao conflito, acabaram fugindo para a Serra de Maracaju, de onde só retornaram anos depois. Ao voltarem, encontraram as aldeias devastadas e as terras ocupadas e transformadas em fazendas.

É o que apontam os relatórios antropológicos dos estudos da Funai que delimitaram, por duas vezes, uma das terras reivindicadas como tradicionais pelos terena, a Taunay Ipegue, em Aquidauana, a 135 km de Campo Grande. Anos depois, a contestação é forte de quem tem a titulação da área em mãos. Em um dos lados nessa briga estão duas primas de segundo grau da ministra que hoje comanda a pasta responsável pelas demarcações de terra. Proprietárias da Fazenda Esperança, Mônica Alves Corrêa e Mirian Alves Corrêa são primas de Tereza Cristina, titular do Ministério da Agricultura do governo Bolsonaro.

História – A primeira demarcação de Taunay Ipegue ocorreu em 1968 após medições do Major Cândido Mariano da Silva Rondon, realizadas em 1905. Foram destinados 6.336 hectares aos terena, mas segundo documentos históricos, eles sempre alegaram que uma porção grande do território teria ficado de fora. Na década de 1980, os índios pediram a anulação da demarcação inicial.

Uma das áreas reivindicadas era a antiga aldeia Naxe-Daxe, a oeste da área demarcada, local onde hoje incide a Fazenda Esperança. Em 1999 uma portaria do governo pediu um novo estudo para delimitar a área. O relatório do antropólogo Gilberto Azanha, foi entregue em 2003 ampliando o território.

Sobre a fazenda, um dos pontos do relatório cita que a compra ocorreu de forma irregular. “Mas contra os direitos indígenas tudo era possível, até mesmo utilizar-se de um documento de compra e venda (acreditando mesmo na sua boa fé) de um simples engenho para legitimar e legalizar um latifúndio com mais de 30 mil hectares”, afirma o documento.

Além das alegadas irregularidades na compra da terra que hoje é a Fazenda Esperança pela família dos Corrêa, os relatórios descrevem uma mudança brusca, após a Guerra do Paraguai, na rotina dos terena. Patriarca da família, Estevão Corrêa, militar do Exército, foi uma das pessoas que fizeram morada na região. É o que explica Azanha.

“Para sobreviverem na sua região tradicional, os índios Terena, Kinikinau, Laina e Guacuru tiveram que se submeter ao ‘cativeiro’ - e essa condição perdurou mesmo após Rondon ter assegurado aos Terena de Cachoeirinha e Tauny-Ipegue pequenos tratos de terra em meio às ‘posses’ dos novos fazendeiros (os oficiais do exército desmobilizados de que fala Roberto Cardoso). Esse período de cativeiro só vai terminar com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) por Rondon em 1910 e a chegada dos seus agentes na região de Miranda em 1915”, conta o antropólogo.

Os terena, então, passaram a ter relações de trabalho com os fazendeiros, rotina, conta o antropólogo, que beirava a escravidão.

“Eram os famigerados ‘camaradas de conta’ descritos por Roberto Cardoso de Oliveira e também por Rondon. Só que a conta nunca fechava: sempre os ‘camaradas’ ficavam em débito com o fazendeiro...Se algum destes índios ‘camaradas’ tentavam escapar, eram imediatamente presos. E os ‘cativos’: eram empregados em tempo integral pelo fazendeiro para todo tipo de trabalho em troca da ‘licença’ de morada e para fazer um pequeno roçado para a sua subsistência e de sua família na ‘propriedade’ (só que esta propriedade estava assentada em sua antiga morada/território ou de seus pais e avós)”, explica Azanha.

O que afirma Gilberto também é citado por Rondon durante as expedições à região: "São comumente explorados pelos fazendeiros. É difícil encontrar um camarada Terena que não deva ao seu patrão os cabelos da cabeça (...). Nenhum 'camarada de conta' poderá deixar o seu patrão sem que o novo senhor se responsabilize. E, se tem ousadia de fugir, corre quase sempre o perigo de sofrer vexames, pancadas e não raras vezes a morte, em tudo figurando a polícia como co-participante de tais atentados" ( Relatório dos Trabalhos realizados de 1900-1906 pela Comissão das Linhas Telegráficas do Estado do Mato Grosso apresentado às autoridades do Ministério da Guerra).”

Índios Terena durante conflito na Fazenda Esperança em 2013 (Gazeta do Pantanal)
Índios Terena durante conflito na Fazenda Esperança em 2013 (Gazeta do Pantanal)

Território declarado e ocupado – O novo relatório antropológico, delimitou, então, 33.900 hectares aos terena de Taunay Ipegue. Declarada, a terra ainda não foi demarcada e homologada, mas hoje os índios ocupam todo o território, após diversos avanços em fazendas, que eles chamam de retomadas, e que ocorreram em 2013 após a morte do Terena Oziel Gabriel. Desde então, as proprietárias da Fazenda Esperança não vivem mais nas fazendas, mas não desistiram da disputa.

Terena que cresceu em Ipegue, acompanhou as mudanças, ocupações e depois formou-se em Direito, Luís Henrique Eloy é um dos indígenas a reivindicar a terra. Hoje, conta, o processo de demarcação está suspenso no STF (Supremo Tribunal Federal), após fazendeiros acionarem o tribunal superior.

“Na demarcação feita por Rondon em 1905 tem uma ata dos caciques Terena que concordam. Foi no sentido de garantir o mínimo. No relatório ele deixa isso bem detalhado, são documentos oficiais, ou seja, a lei de terra no procedimento de regulação ela previa que após a publicação dos editais, os índios eram responsabilidade dos juízes de órgão, na tutela orfanatória. Os juiz de Miranda foi omisso na hora que o Estevão Alves Correa, avô delas, adquiriu toda essa terra”, defende.

A família de Eloy, conta o indígena, sempre trabalhou para os Corrêa e ele afirma que a relação com o pai de Mônica e Mirian, Ênio, era pacífica. “Meu avô trabalhava pra ele, minha mãe cresceu nessas fazendas, minhas tias eram cozinheiras. Então meu avô lembra de tudo. Até quando o seu Ênio vivia ele tinha uma relação de proximidade com os Terena e foi a partir da morte dele que proibiram os terena de perambular ali para catar guavira, mandava passar trator”, relata.

“No dia da retomada, no dia 31 de maio de 2013, uma anciã da aldeia ela foi relembrando. Muitos anos atrás, o único lugar onde tinha água era uma mina chamada olho d'água que fica na divisa entre a fazenda e a aldeia. Na época o seu Ênio mandou cercar e colocou gado e a única opção para não morrer de sede era se arriscar, era beber aquela água com sujeira da água. Ela relata que nunca mais isso iria acontecer porque os Terena ocupavam seu território”, pontua.

Presença da Polícia Militar durante os conflitos de terra em 2013 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
Presença da Polícia Militar durante os conflitos de terra em 2013 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Essa terra é minha – Mesmo que esteja ocupada pelos terena, as proprietárias tentam reaver na Justiça as fazendas da família. É o que explicaram os advogados que atuam junto à Mônica e Mirian.

Nilton Ribeiro Chaves Junior afirma que no final do ano passado uma sentença proferida pela justiça de primeiro grau concedeu reintegração de posse às fazendeiras. “Os proprietários estão sem a terra, sem qualquer expectativa de regressarem à terra ou serem indenizados, não vai nem pra um lado nem pro outro. A última movimentação foi para sentença determinando a reintegração de posse para as nossas clientes, mas a Justiça não cumpre alegando que pode gerar conflito”.

“O que acontece com a região de Taunay, trata de ampliação, não é uma demarcação, é uma reserva já delimitada, eles tem um processo que corre há mais de 34 anos, foi até a última fase. Quando chegou nesta última fase ele foi suspenso por decisão do STF. Um mandado de segurança para suspender a finalização desse processo demarcatório”, explicou a advogada Carla Cafure.

A família Corrêa indo embora da Fazenda Esperança em 2013 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
A família Corrêa indo embora da Fazenda Esperança em 2013 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Mirian Alves Corrêa relata que a família tem o título da terra “desde a época do Império”. “Está invadida desde então [2013], nós entramos através de uma conversa, que quem intermediou foi o Dr. Emerson Kalif [procurador do MPF], para retirar nossas coisas. Nossa propriedade é da época do império, de 1873, não é possível que vai considerar indígena, porque se for assim todo Mato Grosso do Sul vai ter que ir embora”.

“A gente está com uma reintegração de posse que foi julgada no TRF de São Paulo em segunda instância, estamos aguardando a notificação da Funai e do MPF. Alguma coisa vai ter que acontecer, ou reintegra a fazenda ou eles vão ter que pagar isso porque isso foi um roubo somado a um esbulho, quem invade propriedade dos outros é bandido, não importa a etnia”, comentou.

Novo governo, esperanças e temores – Jair Bolsonaro (PSL) tomou posse como presidente do país levando consigo uma série de promessas, entre elas a de não demarcar mais um centímetro de terra para os índios. O novo governo, para os indígenas, é símbolo de temor, mas para os proprietários de terra, uma esperança.

“A gente sabe que a família dela tem uma briga muito grande com os Terena. A partir disso ela vai direcionar [Ministério da Agricultura] no sentido de beneficiar nessa disputa a família dela. Com a demarcação indo para o Ministério da Agricultura ela não vai medir esforços para tentar rever essa demarcação, que ainda não foi concluída”, afirma Eloy.

Mirian, por outro lado, afirma não ter uma relação de proximidade com a prima, mas declarou acompanhar de perto a “ascensão” da ministra e espera que o governo Bolsonaro dê outros rumos ao conflito de terras. “Nós temos uma ligação muito tênue e acho que isso não tem a ver com querermos justiça, isso tem a ver com lei, a lei existe, não posso entrar na sua casa a hora que bem entendo. Num governo de esquerda, petista, era um governo com viés de esquerda então não interessava fazer justiça”.

“É lógico que agora você tem pessoas com viés de direita, a ministra Tereza, o presidente, o juiz Moro, pessoas que tem viés de direita, constitucional, a gente entende que vamos ter um retorno sim. A expectativa é muito grande”, complementa.

Presidente Jair Bolsonaro com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (Foto: Divulgação/Rafael Carvalho/Equipe de transição)
Presidente Jair Bolsonaro com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (Foto: Divulgação/Rafael Carvalho/Equipe de transição)

O que diz a ministra – Por meio da assessoria de imprensa, Tereza Cristina declarou que o vínculo com as primas “é distante e ela não tem conhecimento e nunca conviveu”. Sobre a demarcação das terras indígenas, afirmou “ser regida pela Constituição e que não houve qualquer mudança nessa política”.

“Apenas a parte fundiária da Funai foi transferida para o Incra, ligado agora ao Ministério da Agricultura. A Funai continua a trabalhar como sempre, só que dentro do Incra”, comentou, por meio da assessoria. A ministra também afirma que não será ela “quem decidirá sobre demarcação”. “Os estudos do Incra serão submetidos a um conselho interministerial antes de seguirem para eventual decisão final do presidente da República”, concluiu.

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