Nova anistia reacende fantasmas da ditadura e divide bancada de MS
Ao comparar os anos de chumbo com o 8 de janeiro, extrema-direita dificulta benefício aos condenados

Depois do vexame ao tentar emplacar a PEC da Blindagem, derrubada no Senado, a Câmara dos Deputados avança nas discussões sobre uma proposta de anistia aos golpistas que pretendiam anular o resultado das eleições de 2022. Para tentar inovar, o relator da proposta, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), foi buscar ajuda da dupla que conspirou para o impeachment de 2016: o ex-presidente Michel Temer (MDB-SP) e o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e tenta trocar o perdão pela redução das penas, a chamada dosimetria. A votação, prevista para esta semana, acabou adiada para a próxima quarta-feira.
RESUMO
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A Câmara dos Deputados discute proposta de anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. O relator, deputado Paulinho da Força, busca apoio de Michel Temer e Aécio Neves para alterar o texto, substituindo o perdão pela redução das penas. A votação foi adiada para a próxima semana. A bancada de Mato Grosso do Sul está dividida sobre o tema. Dois deputados são contra, um é favorável e cinco não se manifestaram. Especialistas alertam que comparar esta anistia com a de 1979 é inadequado, pois aquela foi um ato de reparação às vítimas da ditadura, não um perdão a golpistas.
A bancada de Mato Grosso do Sul na Câmara tem dois votos declaradamente contrários (Geraldo Resende e Dagoberto Nogueira, ambos do PSDB), um a favor de uma anistia ampla que inclua todos os acusados (Rodolfo Nogueira, do PL) e cinco que não quiseram se manifestar (Luiz Ovando, do PP; Beto Pereira, do PSDB; Marcos Pollon, do PL; Vander Loubet e Camila Jara, do PT).
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Falsa equivalência — A senadora Tereza Cristina (PP) também defende anistia que beneficie todos os acusados, mas ressalva que, se o tema chegar ao Senado, analisará detalhadamente o que for decidido na Câmara. Já o senador Carlos Portinho (PL-RJ) foi de uma clareza chocante: ou sai uma anistia para todos, ou o Senado, supostamente sob o domínio majoritário da direita, colocará em pauta o impeachment de ministros do STF em 2027.
O argumento central da direita é o de que só uma anistia ampla, geral e irrestrita poderia “pacificar o país”, como se pactuou, em 1979, na transição da ditadura para a democracia. O paralelo, porém, é falacioso. Ao confundir o regime de exceção (1964–1985) com os 69 dias entre o resultado das eleições de 2022 e os ataques de 8 de janeiro de 2023, a extrema direita desvirtua a história e reforça a impunidade que ela mesma reivindica, como observa a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da CEMDP (Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos.
Em entrevista ao Campo Grande News, Eugênia Gonzaga recorda que a anistia de 1979 foi um ato de reparação — ainda que incompleto — às vítimas de um regime golpista, e não um perdão a golpistas derrotados. “Foi concedida por um governo autoritário a seus perseguidos, exilados e presos políticos”, diz. Mesmo assim, lembra, a lei acabou beneficiando mais os agentes da repressão do que os oprimidos, por ter sido interpretada de modo antijurídico, incluindo torturadores, estupradores e assassinos de opositores.

“Comparar aquele contexto com o atual é uma distorção grosseira, sustentada por fake news e por uma estratégia de contrainformação típica dos porões da ditadura. Jamais vi autoridade séria fazer esse paralelo; apenas grupos extremistas nas redes”, afirma a procuradora.
Para ela, o golpismo de 2022 e os ataques de 8 de janeiro são frutos diretos da impunidade de 1979. Quando, em 2010, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei de Anistia também protegia os criminosos da ditadura, o país recebeu o sinal de que crimes de Estado poderiam ficar impunes, e isso, diz ela, encorajou novos atentados à democracia. Agora, o gesto de revisar certidões de óbito e reconhecer o Estado como autor de mortes e desaparecimentos políticos representa uma autocrítica institucional. “O Estado começa a admitir seus erros e a reafirmar o compromisso com a democracia”, afirma.
A voz das vítimas – Nesta quarta-feira, 8 de outubro, o Ministério dos Direitos Humanos e a CEMDP realizaram, na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, a entrega de 102 certidões de óbito retificadas, documentos que agora registram: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964.” É a segunda cerimônia de reparação desde que o CNJ determinou a emissão dessas certidões em todo o país. No total, são 434 pessoas mortas, enterradas sem a causa mortis escrita corretamente nos atestados de óbito ou simplesmente desaparecidas.
O tema expõe um contraste que a direita evita enfrentar. Ao reivindicar o perdão para quem tentou destruir a democracia em 2022, os novos anistiados silenciam sobre a ausência de justiça para as vítimas do autoritarismo anterior, entre elas vários sul-mato-grossenses. Mas acabam trazendo à tona, novamente, os horrores da ditadura, que também perseguiu e cassou mandatos e direitos políticos em Mato Grosso do Sul.
Entre as vítimas estão o ex-deputado Valter Pereira, preso aos 19 anos por militância estudantil; Ricardo Brandão, advogado e jornalista torturado pelo Dops; e os irmãos Alberto e Humberto Neder, perseguidos por prestar socorro a presos políticos, todos entre os que enfrentaram prisões e torturas no então Sul de Mato Grosso.
A repressão também alcançou o jornalista e ex-deputado Sérgio Cruz, o advogado Luiz Gonzaga de Santa Rosa, o ex-governador Wilson Barbosa Martins, o então vice-prefeito de Campo Grande Nelson Trad e o ex-vereador Fausto Mato Grosso, que tiveram mandatos e direitos políticos cassados. Todos foram vigiados ou detidos em algum momento e simbolizam uma geração que pagou caro por defender a liberdade.
O elo com o 8 de janeiro – Essas histórias lembram que a anistia de 1979, longe de pacificar, consolidou um pacto de silêncio. A impunidade de ontem se reflete no negacionismo de hoje, e explica por que generais e civis, como Augusto Heleno, voltaram a conspirar contra a democracia. Heleno, que em 1977 foi ajudante de ordens do general Sylvio Frota, o golpista da “linha dura” que tentou impedir a redemocratização e acabou sendo derrubado do então Ministério do Exército, aparece agora entre os condenados por tentativa de golpe. É um elo entre dois tempos sombrios.
Enquanto isso, a direita ensaia atos em Brasília em defesa de uma “anistia patriótica”. O deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS) afirma que o Congresso tem “competência constitucional para conceder perdão” e diz que o movimento é “em defesa dos injustiçados de 8 de janeiro”. Já os deputados Dagoberto Nogueira e Geraldo Resende rejeitam a anistia. Dagoberto resume: “Sou contra. Vamos ver como vem o projeto do Paulinho da Força, mas acho que a Câmara não põe pra votar”. Resende prega equilíbrio: “É essencial distinguir quem foi influenciado daqueles que planejaram e financiaram os ataques. Não defendo impunidade total nem punições desproporcionais.”
A ofensiva do PL pela anistia amplia a tensão com o STF, que agora endureceu a aplicação das penas aos condenados pela tentativa de golpe. No ato de terça-feira (7), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) tentou animar os apoiadores: “Assim como ele [Bolsonaro] não baixou a cabeça, nós também não vamos baixar. Estamos a um passo de conseguir aprovar essa anistia”. A deputada Bia Kicis (PL-DF) rejeitou qualquer negociação sobre penas: “Não queremos dosimetria. Queremos Bolsonaro”.
Como se vê, a direita não deixa dúvida de que quer o ex-presidente Jair Bolsonaro entre os beneficiários de uma anistia ou de uma nova dosimetria que reduza as penas, temas que podem ser barrados no Senado ou judicializados no STF.
No fundo, o embate sobre a nova anistia é um espelho da história: quem clama hoje por perdão é herdeiro político daqueles que nunca foram punidos. A procuradora Eugênia Gonzaga afirma que “enquanto o Brasil insistir em não punir seus golpistas, continuará a repetir seus golpes”.