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A mãe guerreira

Carla Antloga (*) | 09/05/2021 13:20

Quando me convidaram para escrever este texto, eu pensei em fazê-lo da maneira mais pessoal possível. E então pensei em algo que sempre dizem que eu sou: uma mãe guerreira. Esclareço, antes de tudo, que amo profundamente meus dois filhos, Miguel e Francisco, mas... ter coragem de matar e morrer por estes dois não significa, de jeito nenhum, que eu ignore as durezas de ser uma mãe guerreira e o quanto a sociedade gosta de romantizar essa história.

Eu sou branca, tenho casa, comida emprego e centenas de privilégios. Se não é fácil para mim, imaginem para a maior parte das mulheres deste país, que conta com quase nenhum apoio do estado e, muitos casos, ganham menos que o necessário para prover alimentação segura para seus filhos.

Eu sei que sou uma mãe guerreira e sei que quando me dizem isso todos tem as melhores intenções.

Mas uma guerreira é alguém que está na guerra. E a guerra é um lugar que desumaniza. A criação que uma guerreira dá para seus filhos é permeada por medo, por uma falta de delicadeza e um embrutecimento que só os filhos das guerreiras conhecem.
Uma mãe guerreira no geral tem pouco ou nenhum apoio do pai ou dos pais dos filhos. É ela que sabe a cor do cocô, o calendário de vacinação, as alergias mais graves. E, como ela cuida de tudo sozinha, é claro que será ela a culpada se algo der errado. E isso gera um horror cotidiano, uma preocupação que nunca acaba. Que mãe nessa condição pode curtir os filhos com tranquilidade? Achar graça nas molecagens? Enxergar poesia na rotina? O amor sai meio torto, as expressões de afeto ficam estranhas: broncas e exigências assumem diariamente o lugar de elogios e da doçura.

A mãe guerreira paga o preço de não abrir mão de si por inteiro e lutar para manter seus sonhos pessoais enquanto sustenta a casa. Ou paga o preço de abrir mão dos seus sonhos, porque não há como fazer de outro jeito.

A mãe guerreira é uma mãe muito culpada, porque os filhos estão na guerra com ela. Eles às vezes tomam sopapos, escutam gritos com muita frequência e presenciam choros, sobrecarga, exaustão. O filho de uma mãe guerreira é alguém que nunca quer dar mais trabalho, porque sabe que ela já está no limite.

Se essa mãe guerreira for feminista, a situação é ainda mais delicada, porque além de tudo ela vai ver ali, todo dia, todas as contradições que ela sabe que existem, e que ela explica e ensina, desfilando na frente dela. Todo conhecimento te tira de algum paraíso, já dizia Melanie Klein. O que já era difícil pode ficar ainda mais tenso: a mãe guerreira feminista vai ser sistematicamente cobrada para não fabricar filhos machistas.

 Eu queria mesmo vivenciar uma maternidade bem leve e colorida, cheia de possibilidades e de lembranças doces, de memórias muito afetivas. Mas, assim como não aconteceu para mim, não acontece para uma enorme parte das mães no mundo. Isso não muda o amor visceral que tenho por minhas crias, mas certamente me faz questionar o porquê de venderem, para todas nós, uma ideia de maternidade que não tem como se sustentar no real da maior parte das mulheres.

(*) Carla Sabrina Xavier Antloga possui pós-doutorado em Psicologia pela USP, com estágio técnico no Conservatoire d'Arts et Metiers, Paris. É professora e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB.

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