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As decisões de Alexandre de Moraes e o futuro do sigilo bancário no Brasil

Por Márcio Widal (*) | 08/09/2025 15:39

Na semana do dia 20 de agosto de 2025, duas decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chamaram atenção do meio jurídico ao suspender, em todo o país, os processos que envolvem a requisição de relatórios de inteligência financeira (os chamados RIFs) produzidos pelo COAF, quando solicitados pelo Ministério Público ou pela polícia sem ordem judicial.

Mas o que está em jogo? os sigilos bancário e fiscal assegurados a todos na Constituição. O debate é técnico, mas tem implicações práticas e relevantes. O STF agora terá que decidir, em caráter definitivo, se o Ministério Público pode ou não requisitar ao COAF os dados bancários e fiscais de pessoas investigadas sem ordem judicial prévia. A discussão está no centro do julgamento do Tema 1.404 da Repercussão Geral, que deverá fixar, com força vinculante, os limites do poder investigativo sobre o sigilo financeiro.

O COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), também conhecido como Unidade de Inteligência Financeira (UIF), é um órgão vinculado ao Banco Central que atua no combate à lavagem de dinheiro. Ele não é um órgão investigativo de apoio do Ministério Público ou da Polícia Federal, mas uma autoridade administrativa autônoma e independente com função de inteligência.

Seu papel é receber comunicações de movimentações financeiras suspeitas, feitas obrigatoriamente por bancos, corretoras, cartórios, imobiliárias, joalherias, entre outros setores, conforme previsto na Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98). Essas informações são analisadas com base em padrões de suspeição (como saques ou depósitos em espécie em valores elevados) e transformadas nos chamados Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs).

Esses RIFs são enviados, de forma espontânea, aos órgãos de persecução penal (como Polícia Federal e Ministério Público) quando o COAF identifica indícios de crime, conforme determina o artigo 15 da Lei nº 9.613/98. O ponto central da discussão, no entanto, não está nesse compartilhamento espontâneo (que é claramente autorizado pela lei), mas na possibilidade de o MP ou a polícia requisitarem diretamente esses relatórios sem autorização judicial prévia.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, garante como direito fundamental a inviolabilidade dos dados pessoais, incluindo dados bancários e fiscais. O inciso XII do mesmo artigo é taxativo: só pode haver quebra do sigilo de dados mediante ordem judicial. Esse entendimento é reforçado pela Lei Complementar nº 105/01, que, no § 4º do artigo 1º, afirma que a quebra de sigilo só pode ocorrer com autorização judicial, em caso de investigação de crimes graves.

Além disso, o Código de Processo Penal, após a reforma do pacote anticrime (Lei nº 13.964/2019), estabelece que cabe ao juiz das garantias decidir sobre o afastamento dos sigilos fiscal, bancário e de dados, nos termos do artigo 3º-B, inciso XI, alínea "b". Logo, polícia e MP podem acessar dados bancários ou fiscais, contanto que exista autorização judicial. Isso coloca em xeque a prática (cada vez mais comum) de requisições diretas ao COAF, sem o controle de legalidade prévio do Poder Judiciário.

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsável por uniformizar a aplicação da legislação federal no país, foi contundente ao definir o seu posicionamento de que é ilícita a solicitação direta de RIFs pelo Ministério Público ou pela polícia sem ordem judicial (RHC 196.150/GO). A decisão reafirma que os dados constantes nos RIFs (que incluem extratos bancários, movimentações financeiras, transferências, saldos e até dados fiscais) são protegidos por sigilo constitucional e, por isso, precisam de prévia decisão judicial fundamentada para serem afastados.

O Supremo Tribunal Federal está dividido sobre o tema. De um lado, a 1ª Turma tem decisões entendendo ser possível o Ministério Público ou a polícia requisitarem diretamente os relatórios do COAF, mesmo sem autorização judicial, desde que exista uma investigação formal em andamento. De outro lado, a 2ª Turma possui decisões que não permitem essa solicitação direta dos RIFs sem a autorização prévia de um juiz. Ou seja, a própria Corte ainda não tem um entendimento único sobre até onde vai o poder das autoridades de investigação no acesso a dados bancários e fiscais.

A controvérsia será resolvida no julgamento do Tema 1.404 da Repercussão Geral, cujo relator é o Ministro Alexandre de Moraes, autor das decisões que suspenderam os processos sobre o tema em todo o Brasil. A decisão terá impacto direto sobre inquéritos, ações penais e medidas cautelares. A depender do que for decidido, provas poderão ser invalidadas ou, ao contrário, legitimadas mesmo quando obtidas sem autorização judicial.

O compartilhamento de dados bancários e fiscais não é um ato trivial. Trata-se de uma das mais invasivas medidas do processo penal, e como tal, deve respeitar os mesmos parâmetros legais das buscas domiciliares, buscas pessoais  ou interceptações telefônicas, que só podem ocorrer com ordem judicial prévia.

É exatamente por isso que o Supremo Tribunal Federal precisa fixar critérios objetivos e restritivos para o compartilhamento de RIFs com os órgãos de persecução penal. Mais do que uma discussão técnica, o que está em jogo é a garantia de que ninguém terá afastado o sigilo constitucional de sua vida financeira sem o mínimo controle judicial prévio.

Concluir que a exigência de autorização judicial atrapalha o combate ao crime é uma linha de raciocínio perigosa para qualquer Estado Democrático de Direito. Isso porque, se aceitarmos esse argumento, estaremos abrindo espaço para relativizar outras garantias constitucionais mínimas sob a justificativa de que elas atrapalham investigações. Esse é um caminho que, uma vez trilhado, é difícil de retornar.

(*) Márcio Widal é advogado e professor de Processo Penal

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.