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Como nos proteger? A escalada das guerras e os deslocamentos

Por Tânia Tonhati (*) | 25/06/2025 07:30

Os dados mais recentes confirmam que vivemos um cenário global de escalada de conflitos armados, com impactos diretos e devastadores sobre as populações civis. A guerra na Síria, que se arrasta por mais de uma década; a invasão da Ucrânia; a intensificação do sofrimento na Faixa de Gaza (Palestina); as crises persistentes no Sudão, na República Democrática do Congo, no Mali, em Burkina Faso, Etiópia, Venezuela, entre outros; e agora a guerra entre Irã, Israel e Estados Unidos – tudo isso revela não apenas a fragilidade de vivermos em contexto de paz, mas também a complexidade das forças políticas, econômicas e ideológicas que alimentam os conflitos.

Nesse sentido, o deslocamento forçado torna-se uma consequência direta da ausência de paz. Milhões de pessoas são empurradas para fora de seus territórios, não por escolha, mas por necessidade de sobrevivência. Buscam abrigo, segurança, dignidade. E muitas vezes não encontram nenhuma dessas garantias, nem nos países vizinhos, nem nos corredores humanitários, nem nas longas jornadas de exílio.

Os relatórios Global Trends: Forced Displacement, do ACNUR, e o Refúgio em números, do OBMigra, ambos lançados no último dia 13 de junho de 2025, demonstram um panorama do deslocamento forçado, o primeiro em nível mundial e o segundo focado na realidade nacional. Segundo os dados do ACNUR, o número de pessoas deslocadas atingiu em 2024 o recorde de 123,2 milhões devido a conflitos, violência e perseguição, representando um aumento de 6% (ou 7 milhões de pessoas) em relação ao ano anterior.

O documento detalha as principais origens e países de acolhimento, notando que países de baixa e média renda são os que abrigam a maioria dos deslocados. Além disso, o relatório explora os desafios de saúde mental enfrentados por essas populações e as soluções encontradas, como retornos voluntários, reassentamento e naturalização, ao mesmo tempo em que ressalta as dificuldades persistentes e a necessidade de mais financiamento humanitário e os cortes que essas agências tiveram com o governo Trump.

Dentre os dados, o que chama muito a atenção é que, uma em cada 67 pessoas no mundo encontrava-se deslocada à força dentro do próprio território ou para fora deste. Já entre os refugiados, há 31 milhões sob o mandato do ACNUR, 5,9 milhões de refugiados são palestinos. Um dado muito preocupante é que, embora as crianças representem 29% da população mundial, elas compõem 40% das pessoas deslocadas à força; entre os refugiados, 41% são crianças e 50% são mulheres e meninas. Demonstrando como os marcadores sociais de diferença de gênero e idade impactam nos deslocamentos e reprodução das vulnerabilidades.

As principais origens dos deslocamentos forçados em 2024 foram o Sudão (14,3 milhões), a Síria (13,5 milhões), o Afeganistão (10,3 milhões) e a Ucrânia (8,8 milhões) — juntos, esses países representaram pouco mais de um terço de todos os deslocados globais. Em termos de acolhimento, 73% dos refugiados foram recebidos por países de baixa e média renda, e 67% permaneceram em países vizinhos aos seus de origem.

Em termos proporcionais, o Líbano foi o país com maior densidade de refugiados (1 em cada 8 habitantes), seguido por Aruba (1 em cada 9). Já os países que acolheram os maiores números absolutos de refugiados foram o Irã (3,5 milhões), a Turquia (2,9 milhões), a Colômbia (2,8 milhões), a Alemanha (2,7 milhões) e Uganda (1,8 milhão). É importante aqui salientar que o Irã está agora em guerra. Os refugiados irão para onde agora?

Já olhando para a realidade nacional a décima edição do relatório Refúgio em Números, demonstra que o Brasil tem registrado um aumento constante nas solicitações de refúgio, consolidando-se como um dos principais países receptores da região. Entre 2015 e 2024, foram recebidas 454.165 solicitações de pessoas provenientes de 175 países. O ano de 2024, especificamente, registrou o terceiro maior volume de pedidos de refúgio da década (68.159), ficando atrás apenas de 2018 e 2019, o que indica uma retomada após os impactos da pandemia da covid-19.

O relatório também aponta mudanças importantes no perfil demográfico dos solicitantes e refugiados. Avanços metodológicos possibilitaram uma leitura mais precisa por faixa etária e gênero, revelando o aumento da presença de crianças, adolescentes e mulheres entre os solicitantes — o que implica a necessidade de adaptação das políticas públicas de acolhimento.

De 2015 a 2024, as principais nacionalidades dos solicitantes foram: venezuelanos (266.862), cubanos (52.488), haitianos (37.283) e angolanos (18.435), que juntos representaram 82,6% do total. No recorte de 2024, venezuelanos (39,8%) e cubanos (32,7%) lideraram os pedidos, com destaque para o crescimento de 94,2% dos pedidos cubanos em relação a 2023. A maioria dos solicitantes eram homens (59,1%) e jovens, com 76% dos solicitantes entre 0-39 anos, o que reforça demandas por integração educacional, social e laboral.

Em síntese, os dados dos relatórios convergem para evidenciar que vivemos uma crise global de deslocamentos forçados em escalada sem precedentes, que alcançou a marca recorde em 2024, impulsionada por conflitos armados, violência generalizada e graves violações de direitos humanos. Este cenário de crescente complexidade não apenas pressiona severamente o sistema humanitário internacional, já fragilizado por cortes de financiamento, como também se reflete de maneira intensa no Brasil, que se consolidou como um dos principais países receptores de solicitantes de refúgio.

Ambas pesquisas revelam ainda uma transformação significativa no perfil demográfico das populações deslocadas, marcada pelo aumento expressivo de mulheres, crianças e adolescentes, o que impõe a necessidade urgente de revisão das políticas públicas de acolhimento e proteção, com destaque para o direito à reunião familiar — prioridade adotada pelo Conare no Brasil. O tema, portanto, é central e revela a necessidade de fortalecimento dos mecanismos de proteção internacional a uma realidade de deslocamento cada vez mais dinâmica, vulnerável e massiva, diante do visível do aumento das guerras e intolerâncias.

Referências

1. Tradução livre do inglês para o português: “A busca pela paz deve estar no centro de todos os esforços para encontrar soluções duradouras para os refugiados e outras pessoas forçadas a fugir de seus lares."

2. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE. Refúgio em Números: 10ª edição – 2025. Brasília: MJSP/CONARE, 2025. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/refugio-em-numeros. Acesso em: 23 jun. 2025.

3. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES (UNHCR). Global trends: forced displacement in 2024. Geneva: UNHCR, 2025. Disponível em: https://www.unhcr.org/global-trends. Acesso em: 23 jun. 2025.

(*) Tânia Tonhati é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre as Migrações Internacionais (LAEMI-UnB) e pesquisadora do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra-UnB)

 

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