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Da retomada do território à identidade ancestral

Taís Aline Baptista Salomão (*) | 02/08/2021 08:30

Sou Taís Aline, tenho 41 anos, venho de um contexto de baixa renda e estou me graduando em Design Visual na UFRGS. Desde o primeiro instante no curso sonhei com o momento do meu TCC. Tanto que, com três semestres de antecedência, contatei a professora Maria do Carmo Curtis, convidando-a para que me orientasse. Comentei que gostaria de abordar o assunto de intervenção urbana, e ela aceitou. No início da pesquisa sobre intervenções em Porto Alegre, cheguei ao trabalho do artista visual Xadalu, então ficou decidido que seria algo relacionado à obra dele.

Um amigo, naquele período, enviou-me um quadrinho-entrevista do Pablito Aguiar com a Alice Guarani em que ela narra algumas dificuldades e lutas de ser uma indígena em contexto urbano. Entre elas, a questão da identidade e da retomada do território ancestral. Após a leitura, criou-se um desconforto em mim; era uma situação que eu desconhecia completamente e que ocorria a menos de 2 quilômetros da minha casa. Faltando uma semana para a apresentação intermediária do TCC, troquei de tema. Contatei a Alice e lhe perguntei se eu poderia tratar do tema do seu relato. Mudei, então, os rumos do TCC.

Como tenho ascendência indígena, trago em mim os olhos puxados, a baixa estatura e os cabelos lisos. Desde a minha infância, a curiosidade do outro sobre a minha identidade esteve presente, querendo saber de onde vim, já insinuando que eu deveria ser de origem oriental. Sempre me orgulhei de dizer que era indígena, mas não adiantava, enchiam-me de perguntas para ver se não brotava algo em mim que pudesse me encaixar nas suas perspectivas.

Na primeira conversa com Alice Guarani, pude entender o poder da representatividade. Pela primeira vez senti-me reconhecida. Naquele momento, chorei com uma imensa emoção. A partir dali, conheci a história da Ocupação Baronesa pela Retomada do Território Ancestral e, por consequência, da formação do Centro de Referência Indígena-Afro do RS (Criars).

Hoje, no Brasil, só são reconhecidos como indígenas os nascido em aldeias. O Estado se omite de todos os danos, saques, usurpações e expropriações sofridas nos mais de 521 anos. O mesmo Estado que os expulsou das suas aldeias, restando-lhes os subúrbios e as periferias das grandes cidades. Além de todo o preconceito e a estigmatização, temos um governo em que o seu presidente é reconhecido como um anti-indigenista.

Existem falas dele registradas em 15 de abril de 1998, quando era deputado federal, dizendo que a cavalaria brasileira foi incompetente por não ter exterminado os indígenas do país. Uma luta que ocorre nos piores cenários desde a redemocratização.

Em paralelo à pesquisa, comecei a atuar no Criars, auxiliando em trabalhos de design gráfico de forma voluntária. Acabei por integrar a Comunidade Indígena Urbana Multiétnica de Porto Alegre.

Para a minha pesquisa, fiz entrevistas com uma pessoa designer que é indígena, com uma designer ativista, com uma designer que milita em um partido, com uma designer acadêmica (que iniciou o seu mestrado pesquisando sobre as aldeias indígenas de Porto Alegre) e com uma indígena que atua ativamente pela causa indígena urbana.

Também foi realizada uma pesquisa por formulário online em que se buscou a visão dos não indígenas sobre os indígenas urbanos e os modos como os indígenas são recebidos pelo meio urbano. Das mais de 100 respostas, os não indígenas, em sua maioria graduados e pós-graduados, se mostraram muito receptivos aos indígenas – o que parece demonstrar certo comedimento em suas palavras, pois nas respostas das indígenas acadêmicas não faltaram relatos de preconceito, discriminação e racismo tanto nas cidades como nas universidades.

Houve reunião de cocriação com o Criars. Desse caldeirão efervescente foram desenvolvidos 3 lambes (cartazes A3), cada um buscando se comunicar com um público específico. Em um, foi utilizada a frase do título do artigo Indígenas em contexto urbano: não foi a aldeia que chegou à cidade, mas a cidade que chegou à aldeia, escrito por Marcos Júlio Aguiar, Danielle Klimtowitz e Fernanda Correia. Com uma pequena adaptação, ela se transformou em “Foi a cidade que chegou à aldeia”, inscrita em um cartaz com colagens da cidade de Porto Alegre todo colorido como uma fantasia.

Nele, só há duas imagens em cores reais: a de Pindós (palmeiras), sagradas para muitos povos originários e que simbolizam os indígenas cercados pela cidade, e a de um catador de materiais recicláveis na “periferia do cartaz”, mostrando o local reservado para esses indígenas em Porto Alegre.

O segundo cartaz foi criado com a intenção de conversar com os mais resistentes à pauta, tentando utilizar certo humor na mensagem. Dos panfletos e cartazes “trago o seu amor em 3 dias”, mas tentando resgatar o orgulho étnico e de poder expressá-lo pelas ruas da cidade, resultou a frase “Indígena em Contexto Urbano, trago seu orgulho étnico em 3 dias”, com o endereço do Criars.

O último cartaz marcou a resistência do Criars e a sua retomada: “Resistir para Existir”. Também foram produzidos dois modelos de art stickers (adesivos), um trazendo a frase dita durante as entrevistas “Indígena em contexto indígena” e a América ao fundo; o outro com o logo do Criars para marcar a cidade. Também houve quatro projeções em três bairros da cidade.

Foi um trabalho coletivo do começo ao fim, pois contei com a ajuda de amigos e familiares para executar a ação. Ela teve início no dia 18 de abril de 2021, um dia antes da data que marca a luta indígena, e se concluiu na data dos 521 anos da invasão colonial (22 de abril de 2021). A ideia inicial era demarcar o perímetro do Criars na Cidade Baixa, mas já no primeiro dia percebi que poderia ir mais longe. Ao final, foram demarcados os bairros Bom Fim, Azenha, Moinhos de Vento, Santa Cecília, Restinga, Centro Histórico e Cidade Baixa com 88 lambes, mais de 120 adesivos e 4 projeções.

Esse trabalho trouxe muito mais que uma realização acadêmica, trouxe-me a minha família ancestral.

(*) Taís Aline Baptista Salomão é bacharela em Design.

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