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Diante do caos, a curadoria via WhatsApp

Isadora Smaniotto Garcia (*) | 26/01/2022 08:30

As redes sociais adoecem o jornalismo. Ou, melhor dizendo, adoecem certa concepção de jornalismo, segundo a qual este é capaz de reproduzir a realidade tal como ela é. Para o difícil ‘tratamento’, neste caso, a melhor alternativa é a prevenção. Por isso, sujeitos e organizações criam e recriam imunizantes na tentativa de combater o perigo constante e de fácil infecção. No entanto, a imunização requer uma atitude não só individual, mas coletiva, para a garantia de um efeito real sobre o que se vive.

Informar é uma função reconhecida do jornalismo. A pesquisadora Gisele Dotto Reginato, porém, a partir de uma reflexão teórica e da análise de opiniões de veículos, jornalistas e leitores, observa: é insuficiente considerar informar, por si só, como papel do jornalismo. É necessário que se informe de modo qualificado, ou seja, que a informação siga determinadas exigências ou tenha certos atributos para que seja considerada jornalística. Em trabalho posterior, Gisele identifica pelo menos cinco dessas exigências: ser verificada, relevante, contextualizada, plural e envolvente.

Por esse caminho, é possível enxergar uma saída para o cenário vivido pelo jornalismo – de crise, que é financeira, mas também política, existencial, de ética, de credibilidade, de governança e de gestão, como escreveu Rogério Christofoletti ao debater se a crise do jornalismo tem solução. É preciso que se exerça uma mediação qualificada entre a realidade caótica dos acontecimentos e a sociedade, argumenta o pesquisador e professor Felipe Moura de Oliveira, da UFRGS, que discorre sobre essa ideia principalmente a partir de sua tese de doutorado.

Essa crise produz e é produzida por um certo caos informativo no qual estamos imersos. Você já sentiu como se uma avalanche de informações viesse ao seu encontro diariamente – sejam elas verdadeiras, falsas, incorretas, a fim de causar prejuízos ou não? Em 2020, a Organização Mundial da Saúde chegou a alertar sobre uma “infodemia” em meio à crise sanitária de covid-19 – uma superabundância de informações que torna difícil para as pessoas saberem onde encontrar fontes e orientações confiáveis.

É na busca pelo oposto – ou seja, pela organização – que a curadoria se estabeleceu no jornalismo. Cara a cara com o caos, ela diz ao usuário: “isso merece sua atenção, aquilo pode ser deixado de lado”. Um dos espaços no qual a curadoria aparece são as newsletters, boletins informativos tradicionalmente enviados por e-mail que inspiram formatos que têm ganhado espaço no WhatsApp.

É o caso do projeto Zap Matinal, lançado em 2020 pelo Grupo Matinal Jornalismo, de Porto Alegre, a partir de sugestões trazidas pela antropóloga Lucia Mury Scalco, presidente do Coletivo Autônomo Morro da Cruz, da capital gaúcha. O Zap Matinal é um serviço de envio, pelo WhatsApp, de boletins de notícia produzidos a partir de uma curadoria em diferentes fontes. No Rio Grande do Sul, Jornal do Comércio e O Sul são exemplos de veículos que compartilham – de modos distintos – da proposta de oferecer uma curadoria por meio do aplicativo. Mas de que forma isso pode contribuir para o enfrentamento do caos informativo?

Com base nos atributos necessários para que uma informação seja considerada qualificada, se tentou medir como se dá essa contribuição, tomando como exemplo o Zap Matinal. No período analisado, cada edição era composta por uma versão em texto e uma em áudio. Entende-se que, quanto maior o atendimento à cada categoria (verificação, relevância, contextualização, pluralidade e envolvência), mais perto o jornalismo está de cumprir plenamente a sua função de informar de modo qualificado e também a mediação qualificada.

A análise dos dados mostra que a contribuição do serviço se dá mais pela capacidade de envolver o usuário (a presença da categoria ‘envolvência’ foi de 77,69% no material estudado), lançando mão de links, emojis e formatações bold e itálico nas mensagens, assim como de saudações e trilha sonora, além de previsão do tempo e dicas culturais. Aferida por meio da identificação de quem produz o boletim (jornalista ou empresa) e da fonte de onde vêm as notícias selecionadas, a presença da categoria ‘verificação’ é considerada mediana (com 53,34%). Tem também presença avaliada como mediana a ‘contextualização’ do que se apresenta (48,98%) em relação a disponibilizar links das notícias selecionadas e a dar mais detalhes sobre a notícia quando narrada em áudio.

Por outro lado, é ainda pouco explorada (42,65%) a ‘pluralidade’, relacionada a trazer fontes e pontos de vista variados, que poderiam dar espaço a veículos mais locais ou de fora do circuito jornalístico convencional e também a organizações e pessoas que não sejam ligadas ao Estado ou a instituições a ele relacionadas. A ‘relevância’ (39,90%) também foi considerada baixa – no caso desta pesquisa, a categoria foi medida a partir do nível regional das notícias, da temática e da ordem de aparição da notícia definida como mais relevante.

Com os resultados, o que se nota é que o projeto, no período analisado, ajuda a enfrentar o cenário exposto, mas precisa e tem potencial para ser mais explorado, principalmente nas características em que alcançou percentuais menores.

Fica, todavia, o alerta: os boletins de curadoria jornalística enviados pelo WhatsApp têm um papel importante frente ao caos informativo, mas não são suficientes para dar conta disso. Enquanto serviços capazes de organizar o grande volume de informações que circula, eles exercem uma mediação qualificada. O cenário depende, porém, de que as fontes das quais são retirados os materiais também cumpram esse tipo de mediação.

Como lembra o pesquisador Andriolli de Brites da Costa ao discutir sobre jornalismo e verdade, mesmo em tempos de crise, o jornalismo é um dos grandes organizadores da realidade social. E precisa criar narrativas que envolvam e acolham. Assim, se a doença que se propaga sobre parte do jornalismo não será erradicada, se espera, ao menos, que os anticorpos ajudem a gerar uma imunidade coletiva.

(*) Isadora Smaniotto Garcia é graduanda do 8º semestre do curso de Jornalismo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS.

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