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Juventude não brota em pé de guavira

Tiago Duque (*) | 10/02/2021 07:20

A discussão geracional diante da pandemia da Covid-19 se deu, desde o seu início, não somente por envolver idosos em “grupos de risco”, mas também pelo perigo que crianças representam na transmissão do vírus, que coloca em ameaça a saúde dos mais velhos. Contudo, neste texto, quero refletir sobre a juventude. Quando falo em juventude, uso o termo em um dos sentidos correntes, isto é, estereotipado em torno de um grupo que tem dificuldades em cumprir regras, que pouco se preocupa com as consequências das suas atitudes e que se diverte em aglomerações.

Esse uso, obviamente, é um uso classificatório que merece ser problematizado. Sabemos que o estereótipo é construído culturalmente a partir de elementos isolados, agrupados de forma generalizadora e bem situados em variadas relações de poder. Um exemplo disso é que o tema da criminalização da juventude é recorrente há muito tempo, portanto, antes da pandemia. Em casos muito específicos essa criminalização tem classe, raça e região da cidade muito bem definidos.

No caso da pandemia da Covid-19, as imagens mais divulgadas quando o assunto é juventude no uso corrente aqui enfocado, são as das festas chamadas de “clandestinas”. É curioso que essas festas, muitas vezes, são divulgadas nas redes sociais de forma a estar longe das preocupações em torno do segredo, e nem sempre são em espaços privados, escondidos ou distantes dos lugares mais conhecidos das cidades. Os ritmos e estilos musicais são diversificados, indicando a segmentação da própria juventude em termos de “identidades”.

Seja como for, nos últimos meses, foi em torno das festas “clandestinas” da juventude que se alimentou esse estereótipo de que ela seria indisciplinada com as regras, inconsequentes com os seus atos e, principalmente, causadora de aglomerações. Essas características até podem ser boas diante de outras situações, afinal, as regras mudam também com desobediência, a inconsequência pode gerar novas descobertas e aglomerar, às vezes, tem o efeito de comunidade. Mas, quando o assunto é Covid-19, elas são características condenáveis.

Estou de acordo que precisamos responsabilizar aquela parte da juventude que coloca o vírus em circulação devido às festas “clandestinas”, mas tenho entendido que algo igualmente necessário é desmistificar que hoje existe, sozinho, um grupo geracional mais culpado pelos números aterrorizantes de mortos e doentes nessa pandemia. Não faço uma análise quantitativa, populacional nos termos numéricos. Ao invés disso, penso ser fundamental entendermos que a juventude não brota em pé de guavira. Mesmo essa fruta tão típica aqui no Centro-Oeste, cresce em um contexto que está muito além dela mesma, envolvendo, por exemplo, o clima e a proteção do meio ambiente.

A juventude existe porque existiu antes uma geração que a produziu, e a produziu dessa forma, diversificada entre si e, por isso, difícil de ser generalizada em estereótipos.  Mas, inegavelmente, há uma geração, mais velha, responsável pela juventude que promove, frequenta e divulga as festas “clandestinas”, não necessariamente nessa ordem. Logo, ao vermos as festas da juventude em tempos pandêmicos deveríamos nos responsabilizar, também, por termos produzido, há décadas, esses valores.

Um exercício bastante didático em relação a percepção desses valores pode ser feito quando olhamos para duas cenas cotidianas, envolvendo outras gerações na pandemia. Em um badalado shopping da cidade, as crianças estão gritando, se tocando, pulando e escorregando, várias sem máscaras, sobre os mesmos brinquedos infláveis.  Todas, juntas, de diferentes famílias, compartilhando a mesma estrutura gigante, se divertindo. Em uma praça esportiva, de um bairro economicamente valorizado da cidade, idosos recusam obedecer às sinalizações de impedimento para o uso e compartilham os mesmos aparelhos de ginástica públicos, conversando, rindo, portanto, também se divertindo.

As crianças de hoje serão a juventude de amanhã, e os idosos de hoje são a juventude de ontem. Sendo assim, parte dos valores societários não são da juventude. Ela aprende e, depois, ensina novamente. Essa dinâmica, que não é simplesmente reprodução, notoriamente, traz mudanças. Contudo, a movimentação dos valores se dá em um ritmo insuficiente para que possamos acreditar que eles irão se transformar facilmente, apenas fechando as festas e pedindo para que a juventude volte para casa. Muitas crianças e muitos idosos não estão nas festas “clandestinas” porque não podem ou não convém, caso contrário, hipoteticamente, lá estariam, vivendo e fazendo circular os valores que conseguimos produzir enquanto sociedade.


(*) Tiago Duque é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

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