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Minha amiga ferida, sinto sua falta

Iande Albuquerque | 05/11/2017 15:28

Olá, ferida minha. Olá, meu amor. Como você está? E a saúde? Péssima, como sempre? Ou controlada, mantendo as aparências, sem notar que existe mas mantendo sua estreita conexão com minha dor? Minha amiga ferida, sinto sua falta. O tempo todo quero te sentir, mas isso você já sabe. Só não posso aparentar, que boa ferida é aquela que mantemos escondida, como se fosse um tesouro guardado até de nós mesmos, de quem até sentimos certa vergonha, que porém, a quatro paredes, alimentamos com muito cuidado e carinho.

Um dia você surgiu. Para alguns, amigas como vocês aparecem em meio a simples crises – para quem está de fora, fáceis de solucionar. Para outros, em meio a blackouts internos. Quando a incapacidade de tocar o dentro e o fora traduz-se numa repentina queda na superfície e no potencial amoroso da dor. É preciso entrar em contato. Traduzir essa distância de si e do outro na saída de sangue amargo – que tão bem traduz nosso escorrer pela vida e escorregar pela vontade não domada. Aí nós o provamos, e distanciados de nós mesmos (finalmente) nós nos aproximamos. De algo que se traduz num contato maior. Vem a calma. A paz.

Minha querida ferida, querida amada, vem de antes de você. Do momento em que algo caiu em mim – e nunca mais consegui pegar do chão. E sabe que não sei quando isso aconteceu? E sabe que não sei onde aquilo lá ficou? Talvez em um outro país, quem sabe, né. Ou no vôo de vinda – em meio às nuvens que rodeavam o barulhento 707 que embalavam mais uma tragédia. Ou quem sabe no olhar de alguém que me matou. Sei apenas que tudo foi antes. E que não sei quando foi. E que você veio depois – meio que para me lembrar. E que com você eu me lembro. E amo – a tudo e a todos. Por uma conexão que cheira mal. Por uma conexão que escorre – pústula maldita que abre espaços no esgoto da alma que acha a pureza do inferno.

Você, minha idolatrada, nasceu sutil, quase como uma sugestão. Os gestos de mau agouro multiplicavam-se ao seu redor. Começava eu a me tornar quase um fantasma quando deles você passou a retirar a energia negativa necessária para impor-se como uma irrealidade. Sim, você ainda não existia quando ocorreu o mal-estar de me saber imerso em dor. O tempo passou. Mas você não podia ainda sequer ser tipificada naquela época; poderia ser mal disto ou daquilo. Foi quando eu optei por você enquanto modus operandi geral.

Teu crescimento desordenado, até então abominado, passou a me apaixonar. Tuas aparições momentâneas viraram quase gestos de grandeza. Foi como se a festa, isenta de penetras, passasse a seguir a sua lógica – e a alegria de morrer, sua filosofia. Foi quando nos embebedamos pela primeira vez e saímos de mãos dadas opondo-nos ao saber oficial. À postura de rejeito a ser combatido: pois ele estava em nós e parecia ser o nosso amigo. E você provou que era.

Foram meses carregando sinais de desmembramento. Sapatos sujos e amarfanhados com lápides de desapego; meias que duravam semanas, apenas; dores intermitentes quando a chuva te tocava; as distinções entre saúde e doença não mais passavam a fazer diferença; eu suportava o frio e o calor mal sabendo o que me rodeava; a chuva me destruía por fora, mas por dentro eu parecia bebê-la como água límpida de rio no qual eu passara a me banhar.
Foi interessante tudo isso; abriram-se clareiras em minha dureza extrema; clareiras em que eu podia brincar e lamentar, com sua presença, um cansaço que não me dizia mais respeito. Há quem traduza em ferida amiga pequenos traços de dor. Outros fazem verdadeiras sinfonias com cortes de profundezas variadas que viram padrões similares a obras de arte.

Há quem prefira cortar pedaços; outros avançam mais fundo até sentirem algo indizível que os faz parar mas que os motiva a continuar; há quem tenha a coragem de realizar trabalhos de autópsia enquanto vivos, buscando origens de energia onde só existem tendões, veias e sangue, muito sangue.

Os que decidem extirpar membros fazem-no com a convicção da mulher do casal de O Império dos Sentidos, que retirou o pênis do amante para lhe dar o prazer final. Para então deixa-lo lá, inerte, preso a uma dimensão a que muitos ainda querem desfrutar. Muitos não entenderam o filme à época; hoje ele é quase um livro infantil. Mas o grau da amizade e da integridade da relação não se mede pelo tamanho do traço: formigas ou rinocerontes, as feridas atam um liame imperscrutável que nos catapulta para dimensões sempre inacreditáveis.

Ela achava que eu não sabia do que falava. Nós normalmente achamos isso. Subestimamos a dor contida do outro – somos especiais, afinal? Subestimamos que o fluxo do sangue nos irmana a todos, e que isso é Igreja. Bebam do meu sangue. Comam o meu corpo. Suponho que haja aqueles que querem não apenas beber a si mesmos, mas também fazer de sua fuga e de sua fome uma fonte ainda mais pura de carência incontida. Mas nunca vi- nem quero. Embora tenha aqueles que gostariam até de mostrar. Que coisa. Minha dor é pura, caralho. Acaso querem que eu a transforme em show coletivo quando ela é apenas meu? Meu show. Palco, plateia, ator, eu mesmo para poder ser algo mais.

Você está aqui, comigo. Aqui em meu pé. Entre meus dedos. Você se esconde mas me diz que está comigo – sempre comigo. Formalmente, é nada. Poderia ter se espalhado como cancro e atingir minha medula espiritual para existir enfim por si só e me deixar, como ser tão fraco como sempre fui, no isolamento e solidão do não-ser. Mas você me amou, querida ferida. Aceitou conviver comigo. Aceitou dividir minhas ausências e me fazer companhia quando nem o sofrimento mais extremo conseguia comover-me. Obrigado, meu amor.

Mas não sei mais o que me acontece. Tua sedução obriga-me a não esquecer. Os momentos bárbaros em que finalmente me achei em você barbarizam minha memória e me fazem acreditar que quanto menos e mais, mais espaço terei à minha volta para poder voar. Quando é mentira.

Pois eles, os momentos, traduzem-se em buracos negros que – sei lá por quê – não mais me atingem. Mais passa o tempo e mais buracos negros apagam o mundo à minha volta. Enquanto isso, subsisto, abraçado a você. Um ET abraçado a um meteorito em meu universo de dores infinitas. A felicidade é uma corda estendida no abismo sem nada a segurá-la. Tua mão é o que busco – a mão traiçoeira de quem dá tudo sem dar absolutamente nada. Dê-me o fim de mim para quem sabe eu ainda tentar o começo. Quem sabe.

Self-harm - Dano autoinfligido (que é como eu traduzo self-harm ou self-injury) é um fenômeno relativamente comum em sociedades avançadas que não tem sido devidamente estudado e tratado de forma à sociedade estabelecido conseguir estabelecer práticas de tratamento ou mesmo de terapia que consigam fazer frente à gravidade do assunto.

A literatura sobre o assunto encontrada na internet tende a ser didática e até mesmo esclarecedora, mas devido à própria dinâmica do assunto – segredo, vergonha, populações majoritariamente jovens, etc. – não costuma entrar em detalhes estatísticos e procedimentais que possam ajudar o profissional de saúde ou os envolvidos indiretamente – familiares, amigos, etc. – a pensarem o tema de forma mais madura. Domina, pelo que lemos nos documentos encontrados na internet, um certo obscurantismo ao lidar com o tema, como se ele fosse apenas uma consequência de o jovem “chamar a atenção”.

Não sendo praticante do self-harm, eu contudo identifico impossibilidade de comunicação no fenômeno de se lidar com feridas não-tratadas e mesmo no entendimento dos motivos que levam jovens (majoritariamente) a se machucarem continuamente.
Não podemos deixar de lembrar que existem práticas na arte suburbana que lidam exatamente com a automutilação e a dor extrema de forma a chamar a atenção a fenômenos contemporâneos relativos à imagem do sujeito na sociedade pós-moderna e ao próprio bem-estar dos artistas envolvidos (alguns dos quais só parecem encontrar alívio a seus problemas pendurando-se por ganchos aplicados à pele por minutos a fio ou lidando com artefatos afiados que podem, em caso de descuido, mutilarem seus corpos permanentemente).

Pode-se notar, no artigo acima, escrito livremente a partir de associações livres e alguns dados empíricos, assim como algumas conversas, que num certo momento faz-se a relação entre arte e esse tipo de manifestação. Pois lembro do filme O Império dos Sentidos, que acaba com a decepação do membro do homem pela mulher, em busca do prazer extremo. Outro aspecto interessante é aquele que cito no parágrafo imediatamente anterior a este, sobre profissionais da arte extrema que se penduram pela pele, tanto usando a pele das costas e frente do tórax como os próprios genitais.

Um amigo que conhece alguns desses profissionais comenta que eles são incrivelmente calmos e de um bom senso admirável. Não sei se pode haver conexão entre isso. Por outro lado, não devemos nos esquecer dos primeiros performers de peso, um dos quais chegou ao ponto de decepar o braço no palco e depois a se matar com uma escopeta como demonstração da radicalidade de sua arte (no caso, da identificação arte-vida). Podem dar da impressão de serem comparações desabridas, mas eu não acho, pois considero que a arte sempre teve, tem e terá a ver diretamente com a questão da autoexpressão, e identifico no self-harm, dentre outras características, essa questão, entranhada na biografia do automutilador e no seu desejo de pureza e morte (que às vezes acontece – vários automutiladores acabam se matando posteriormente). É isso.

Um documento que trata do assunto de forma genérica mas relativamente esclarecedora pode ser encontrado aqui

Artigo publicado no Blog Obvious

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