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Narrativas autobiográficas de jovens mulheres com deficiência

Elisabete Ribeiro e Carla Vasques (*) | 06/05/2022 08:00

Em La juventud es más que una palabra, Mario Margulis e Marcelo Urresti problematizam sentidos naturalizados e supostamente universais, como faixa etária, características físicas e alterações comportamentais, consideradas típicas dos jovens. Não há, para os autores, “o” jovem ou “a” juventude independente da situação econômica, do gênero e da etnia. As juventudes não são únicas e atemporais: trata-se de uma categoria social construída na história e na cultura. Nessa complexa equação, introduzimos um novo fator: a presença da deficiência.

A deficiência, historicamente, é compreendida como um fenômeno individual, desvinculado das condições econômicas, sociais e culturais, e associado à anormalidade e à ausência de capacidade. Desde os anos 1970, contudo, essa configuração biomédica é criticada pelo modelo social de deficiência, para o qual, conforme o autor Michael Oliver, as condições políticas, culturais e econômicas são constitutivas da opressão que restringe as possibilidades de autonomia, trabalho e laço social. Esse movimento ganha novo fôlego com a perspectiva feminista e autoras como Jenny Morris e Eva Kittay, que abordam a intersecção entre deficiência, gênero e raça e trazem o cuidado, a dor e a dependência como temas centrais na experiência de habitar um corpo com impedimentos. Nesse sentido, pautar a autonomia e a independência como valores morais e horizontes sociopolíticos é insuficiente para as pessoas com deficiência, bem como para a própria humanidade.

No Brasil, desde a Constituição de 1988, se reconhece a necessidade de justiça social e reconhecimento das pessoas com deficiência. A Lei Brasileira de Inclusão dialoga com os preceitos acima apresentados e inscreve, na agenda brasileira, a deficiência como resultante das interações sociais e das barreiras impostas pelas instituições, reforçadas ou interrogadas nas relações.

A despeito do plano legal, pessoas com deficiência e, sobretudo, jovens com deficiência são constantemente desrespeitados em relação aos direitos humanos. A Política Nacional de Juventudes explicita o silenciamento em relação às pessoas com deficiência e à ausência de dados e pesquisas: “estamos falando de uma população que, historicamente, enfrenta um ciclo de invisibilidade, causa pela qual os/as jovens com deficiência são amplamente excluídos da vida econômica, política e cultural em sociedade”, consubstanciando o “coletivo populacional mais vitimizado pelas distintas formas de violência presentes no Brasil”.

Para Stella Maris Nicolau, Lilia Schraiber e José Ricardo Ayres, há uma dupla vulnerabilidade das mulheres com deficiência – decorrente da situação de deficiência e de gênero – expressa na menor possibilidade de participação na vida social e política, necessárias à promoção de equidade de acesso aos bens de consumo cultural. A autora Marivete Gesser, por sua vez, afirma a necessidade de práticas e pesquisas anticapacitistas e emancipatórias, capazes de questionar a iniquidade e a violência que tornam ininteligíveis determinadas experiências, vidas e corpos.

A pesquisa Juventudes e deficiência: narrativas autobiográficas de jovens mulheres dialoga com esses autores e perspectivas. Com Jenny Morris defendemos a perspectiva feminista do modelo social em que a deficiência é percebida como uma construção social de opressão sobre as pessoas com impedimentos – por ser social, deveria ser de responsabilidade de todos. Nessa perspectiva, as barreiras socioambientais e atitudinais da sociedade capacitista dificultam a vida dessas pessoas. Como lembra Fiona Campbell, a sociedade normativa faz projeções de como o outro deve ser e, quando este não atende às suas expectativas, passa a considerá-lo um ser humano incapaz. Para a pesquisadora, o capacitismo é o conjunto de preconceitos e discriminações vivenciadas pelas pessoas com deficiência.

Não negamos o corpo que dói, que necessita de cuidados. Assim, corroboramos com Eva Kittay quando afirmamos a necessidade da ética do cuidado, bem como ratificamos a nossa compressão de interdependência humana e de que a normalidade tão propagada é sempre provisória, já que se vivermos o suficiente para alcançar a velhice necessitaremos, ainda mais, dos cuidados de outros.

Como forma de construir pressupostos anticapacitistas, exercitamos nossa escuta no sentido de significar a deficiência como um modo de vida e ampliar nossa capacidade de reconhecer as múltiplas e legítimas formas de ser e estar no mundo. As histórias das participantes da pesquisa sublinham as vivências comuns a partir da geração a que pertencem e outras vivências singularizadas pelos condicionantes dos cotidianos. Elas nos convidam, assim, a adentrar em um universo de situações vivenciadas por quem habita um corpo jovem com impedimentos na sociedade contemporânea, o que nos faz perceber situações comuns a outras juventudes, comuns entre elas, e vivências singulares.

Consideramos que a pesquisa contribui ao visibilizar a positividade da diversidade corporal como potencial analítico, a interdependência e o cuidado como operadores éticos e políticos. Nossa expectativa com a pesquisa é de que possam se ampliar os diálogos acerca das juventudes com deficiência, para que estas sejam reconhecidas e possam garantir suas condições juvenis com seus pares jovens.

(*) Elisabete da Silveira Ribeiro é doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atua como professora pela Universidade Federal do Tocantins. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura – NUPPEC/CNPq.
(*) Carla Kanoppi Vasques é doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Atua como uma das coordenadoras do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura – NUPPEC/CNPq.

 

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