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Notas sobre um imaginário industrializado

Maria Arminda do Nascimento Arruda (*) | 23/09/2021 08:30

Difícil escrever sobre o livro de Eugenio Bucci – A superindústria do imaginário. Como o capital transformou o olhar e se apropriou de tudo que é visível*. Não são poucos os motivos responsáveis por esse embaraço. O escopo do problema construído – as novas formas de expressão do valor das mercadorias que se realizam por meio de signos e imagens, mediadas pelas tecnologias de informação e que configuram a tese central desenvolvida – e o seu exame efetuado por intermédio de vastos domínios do conhecimento, da filosofia, da psicanálise, das ciências sociais, das teorias da linguagem e das comunicações, inclusive da literatura e das artes, são revelações da complexidade da obra. Nesse sentido, a envergadura do livro não alforria o leitor desatento, tampouco é condescendente com aqueles pouco informados. Apesar disso, a leitura flui, pois o autor mobiliza a sua experiência de editor e colunista da grande imprensa, entrevista no estilo direto e nas frases precisas. Teoricamente eclética – ou, para utilizar termo menos ambíguo, transdisciplinar – a tese defendida não abandona o fio condutor da reflexão, conferindo urdidura ao seu pensamento. Por meio do tratamento das transformações radicais do capitalismo impulsionadas pela internet, pelas redes sociais e por todo o arsenal que lhes acompanha, concebidas no interior de empresas globais, Bucci revela como esse aparato colonizou os sentidos e as mentes.

Dito de outro modo, a reprodução atingiu tal profundidade que se materializa, paradoxalmente, na sua expressão desmaterializada, volátil e intangível. É o completo domínio da abstração, tratada de modo prismático por Marx, na análise sobre o fetiche da mercadoria, fruto do deslocamento do objeto em relação ao referente, assumindo, consequentemente, caráter de pura significação. Esse mundo de opacidades está recoberto por um tecido alienado, que emergiu nas teias da relação capitalista. “Desde meados do século XX, quando a televisão massificou, o capitalismo relega as mercadorias corpóreas (coisas dotadas de alguma utilidade instrumental ou prática) para segundo plano. O que assumiu lugar de destaque, ou o primeiro plano, foi outra espécie de mercadoria, que não tem corpo físico palpável: os signos, sejam eles imagens ou palavras. O capitalismo dos nossos dias é um fabricante de signos e um mercador de signos – as coisas corpóreas não são mais o centro do valor” (p.21).

Nesse contexto, a relação entre o caráter útil das mercadorias, expresso no valor de uso que, no capitalismo, não ocorre sem a troca e a valorização, transformou-se em linguagem: “o capital aprendeu a fabricar discursos: uma marca, uma grife, um apelo sensual que faz de uma mercadoria ordinária um amuleto encantado” (p.21). E em outra passagem: “Olhar para uma imagem é – rigorosamente – trabalhar para que aquela imagem adquira sentido, é fabricar significação. E é assim, como trabalho, que o capital compra olhar social: para construir os sentidos dos signos, da imagem e dos discursos visuais que ele pretende pôr em circulação como mercadoria. É assim que são fabricados os valores das grifes e das marcas, bem como as reputações dos políticos, das empresas e tudo mais. Nisso consiste a Superindústria do Imaginário” (p.22-23). Ou seja, trata-se de fenômeno total, dada a revolução que operou na vida das pessoas, alterando radicalmente a sociabilidade nas sociedades contemporâneas, a despeito dos seus efeitos diferenciais, em função das desigualdades existentes.

Esse imaginário fabricado na esteira de indústrias de alta tecnologia da informação, elas próprias desmaterializadas, a ponto de armazenar seus “estoques” numa “nuvem”, enreda os sujeitos de tal maneira que o social se esfuma na pseudoneutralidade dos meios, uma vez que se rompeu a conexão entre a dimensão corpórea dos indivíduos e o consumo das imagens-signo, que se tornaram extensões do próprio corpo. O olho é o órgão privilegiado na fruição dos objetos, em detrimento de faculdades mais intelectivas. O “Imaginário se tece de linguagem. Só de linguagem” (p.27). Em outros termos, o social subsiste na teia das interações de linguagens, adquirindo nova espessura, uma vez que são as mensagens que se movem no espaço e se relacionam. Em suma, é a fantasmagoria dos signos em profusão, “acionados para conferir sentido psíquico à fantasia do sujeito” (p.27). Há uma certa aproximação da análise com as chamadas teorias pós-modernas, ainda que a tese anunciada não adira às posturas desconstrutivistas, dado que se busca elucidar a dinâmica desse capitalismo sem matéria tangível.

O livro, no seu conjunto, está organizado a partir de cinco eixos centrais, discutidos em cada uma das partes: as transformações da esfera pública e a “emergência de um telespaço público” em escala global; as mudanças profundas no espaço e no tempo; o deslocamento da palavra pela imagem eletrônica e o seu impacto sobre a teia da comunicação; a alteração no estatuto dos sujeitos que se tornaram crescentemente fragmentados, sob o impacto da superindústria do imaginário; a redefinição nas formas de produção do valor corrente das mercadorias que passou a agregar o valor do olhar, “para conformar o valor do gozo” (p.30). Segundo esses termos, a reflexão pode ser entendida tanto como uma teoria da dinâmica atual do capitalismo, uma espécie de ultramodernidade, quanto como um libelo sobre as novas faces assumidas pela dominação. Nesse passo, a dimensão política da análise imiscui-se no andamento reflexivo, a exemplo do diagnóstico sobre o enredamento das subjetividades nas tramas desse capital incorpóreo, engolfadas pela sedução de imagens aparentemente inócuas, juízo que encerra as frases de encerramento do livro.

Talvez, entre as dimensões mais fundamentais da reflexão esteja a ultrapassagem da consagrada teoria da indústria cultural de inspiração frankfurtiana, por meio da radicalização dos seus efeitos. A denominada superindústria do imaginário entranhou-se na própria constituição das subjetividades, deixando na sombra qualquer esperança de conciliação que ainda permanecia como possibilidade de refúgio na mente de um autor pessimista como Theodor Adorno. Por esse motivo, a interpretação se encaminha em registro duplamente crítico: do caráter parcial da realização da modernidade; das consequências derivadas desse projeto incompleto, que redundou no enredamento dos sujeitos no tecido do capitalismo. Não por casualidade, o autor se utiliza da imagem do corpo de Descartes para construir a metáfora do moderno, que se imagina teria sido enterrado sem a cabeça e cuja recuperação posterior é tida como inautêntica: “a modernidade é uma filosofia seccionada e degolada, uma razão sem corpo” (p.292). Por isso, não é de se estranhar que a cesura mente e corpo tenha apequenado a abrangência do cogito e deixado os sujeitos sem abrigo. Ronda essas passagens, as teses elaboradas pela teoria crítica sobre a independência dos meios em relação aos fins, isto é, do domínio da razão instrumental, resultando na promessa falhada do moderno.

Entrevê-se, portanto, a amplitude e profundidade da reflexão desse livro, que deverá ser referência insofismável à compreensão do nosso mundo. Certamente, a obra reproduz um mal-estar, seja em relação à sociedade contemporânea; seja em relação à tese de ultrapassagem do mundo da palavra pela fruição fortuita de imagens em profusão. Dessa forma, a reflexão pode ser interpretada no registro da autoanálise e de meditação sobre uma herança cultural e política formativa e introjetada, no momento em que ela “se desmancha no ar”. A palavra como símbolo do humano é também meio de comunicação, de entendimento e de convivência com o diverso. Nessa perspectiva, o livro não deixa de ser um libelo em favor da reconstrução de uma política democrática e civilizada.

(*) Maria Arminda do Nascimento Arruda é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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