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O pato social

Por Karine Pansa (*) | 02/09/2014 08:13

Embora a presidente Dilma Rousseff tenha adiado por três anos (de 2013 para 1º de janeiro de 2016) o início da obrigatoriedade da nova ortografia, fruto do acordo entre os países de língua portuguesa e vigorando em caráter facultativo desde 2009, o Brasil já fez uma parte importante de sua lição de casa nesse processo. As escolas, a imprensa, toda a comunicação e o setor de livros adotaram as mudanças com agilidade e eficácia.

A sociedade, as instituições e o mercado editorial entenderam e assimilaram muito bem as transformações, ao contrário de outras nações lusófonas, nas quais houve mais resistências. Em Portugal, por exemplo, questionou-se muito a extinção do “C” e do “P” mudos em numerosas palavras, como “tacto”, “exacto”, “óptimo” e “excepção”. Os portugueses têm certa razão em reclamar, pois as letras extirpadas eram utilizadas em seu país para marcar as sílabas tônicas de numerosos vocábulos. Embora constassem dos dicionários e do vocabulário oficial brasileiros, as formas escritas das palavras nas quais essas letras não eram pronunciadas oralmente já estavam há muito tempo em desuso no Brasil.

A rigor, o “C” e o “P” extintos foram os de Portugal e não os nossos. Amigos do mercado editorial e da imprensa de Lisboa, externando de modo bem-humorado a sua indignação, argumentavam: “Queremos igualdade de condições e direitos. Se não podemos ser exactos em nosso idioma, então vocês não podem ter um pacto, mas sim um pato social”. Avicultura sociopolítica à parte, os lusos, a despeito de seus questionamentos, e todos os demais governos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com exceção de Angola, já ratificaram o acordo ortográfico.

O mais importante de tudo isso é entender que as mudanças que unificaram a ortografia não alteraram a gramática e a riqueza do Português, com sua incrível multiplicidade de expressões homônimas e parônimas e infinitas possibilidades sintáticas para a composição das frases e sentenças. Isso se reflete numa estrutura formal grandiosa, que faz da literatura de língua portuguesa uma das mais belas, emocionantes e atrativas. Ademais, o alto grau de redundância linguística de nosso idioma permite que os textos sejam lidos rapidamente e na diagonal, sem prejuízo de se assimilar a informação mínima, e também facilita o mecanismo da previsibilidade (ou seja, mesmo quando se faltam letras numa palavra, a pessoa consegue ler de maneira correta). Tudo isso vai a favor do consenso nacional quanto à necessidade de estimular a leitura.

Considerando a adequada e rápida adaptação do Brasil e se levando em conta que até os portugueses, com razoáveis razões para questionar, já ratificaram o acordo ortográfico, são incompreensíveis as propostas que às vezes surgem no nosso Legislativo ou na retórica de pretensos estudiosos do tema, de se produzirem novas mudanças. O mais grave é que essas sugestões são radicais quanto à simplificação da língua. Sua adoção seria um ato insensato, que produziria ao longo de poucas gerações um estrago que nem mesmo as transformações naturais que o tempo impõe aos idiomas foram capazes de provocar no Português. Nossa língua traduz a alma da lusofonia, tão identificada e enfática em meio à pluralidade do povo brasileiro, hoje seu principal guardião, com 200 milhões de vozes!

É injustificável a proposta de simplificação do Português ante a dificuldade de seu aprendizado. Não podemos nos resignar à derrota que isso significaria na educação e na cultura nacionais. Devemos, sim, melhorar a qualidade do ensino, para que nossas crianças, jovens, acadêmicos e profissionais possam utilizar na plenitude todo o potencial que o idioma oferece. Precisamos fechar questão, num verdadeiro pacto em defesa de nossa língua e em favor da escola de excelência. Se abrirmos mão dessa responsabilidade, pagaremos o pato social, sem “C mudo” e sem direito ao bom humor.

(*) Karine Pansa, empresária do setor editorial, é a presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL).

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