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Quando a cheia chega no auge da seca

Por Fabiano Lorenzi (*) | 23/07/2025 08:30

O que o clima extremo revela sobre a logística brasileira?

RESUMO

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Extremos climáticos impactam logística na Amazônia. Cheia histórica no Amazonas afeta mais de 500 mil pessoas, com a capital Manaus registrando níveis recordes de água. Itacoatiara, importante porto fluvial, está inundada, comprometendo o transporte de cargas essenciais na região. A seca extrema também causa problemas logísticos, interrompendo a navegação e isolando cidades.A imprevisibilidade climática exige soluções logísticas resilientes. A multimodalidade, combinando diferentes modais de transporte, surge como estratégia para enfrentar os desafios. A cabotagem, menos afetada pelas oscilações dos rios, ganha destaque no abastecimento da região Norte. Investimentos em infraestrutura e integração entre rodovias, ferrovias e hidrovias são cruciais para garantir a continuidade do transporte em cenários extremos.

A Amazônia enfrenta uma das maiores cheias dos últimos anos. Mais de 500 mil pessoas foram impactadas e mais da metade do estado do Amazonas está em situação de emergência. Tudo isso em pleno mês de julho, o mês em que as águas do Rio Negro tradicionalmente começam a recuar. O cenário oposto indica um sinal claro de que o ciclo natural da região já não segue o mesmo ritmo: o nível da água em Manaus continua subindo e atingiu 29,04 metros na última sexta-feira, marca que não era registrada desde 2014, segundo o Porto da capital.

As imagens impressionantes da cidade de Itacoatiara inundada são o retrato mais recente de como os extremos climáticos vêm desafiando nossa infraestrutura. A cheia histórica transformou a terceira maior cidade do Amazonas em um retrato dramático do colapso climático na região. A 270 km de Manaus, a cidade teve ruas inteiras submersas, casas invadidas pelas águas e centenas de famílias obrigadas a deixar seus lares. Escolas fecharam, o comércio parou e bairros inteiros se tornaram intransitáveis. Itacoatiara virou rio.

A tragédia é humanitária e, dentro de toda sua complexidade, o impacto atinge em cheio a logística da região. Com um porto estratégico para o escoamento de combustíveis, alimentos e cargas essenciais, Itacoatiara é elo vital na rota fluvial Manaus - Itacoatiara - Santarém, hoje comprometida pelo avanço implacável das águas. Em um território onde os rios são as estradas, qualquer alteração abrupta no fluxo dos rios significa também a interrupção do abastecimento básico para milhões de pessoas.

Se hoje a cheia domina os noticiários, é preciso lembrar que o outro lado da moeda. A seca extrema também traz impactos severos à logística, sobretudo no Norte e Centro-Oeste do país. Vista como um dos principais desafios logísticos do país, a seca do Rio Amazonas e de seus afluentes impede a passagem de embarcações e isola cidades por tempo indeterminado. Mais de 1.400 municípios declararam situação de emergência em 2024, classificadas em nível extremo ou severo. Itacoatiara, hoje submersa pela cheia histórica dos últimos 10 anos, foi um dos principais portos de apoio durante a seca extrema passada. Naquele período, quando o acesso fluvial a Manaus ficou comprometido, o terminal da cidade operou como ponto estratégico de transbordo, permitindo que cargas fossem recebidas por balsas menores e, assim, garantindo o abastecimento de combustíveis e insumos à capital amazonense.

Em dois anos, a logística da região Norte enfrenta dois extremos históricos, e isso levanta um ponto de atenção: o clima, antes minimamente previsível, não é mais uma variável controlável, e a infraestrutura logística brasileira vai precisar se preparar para essa nova realidade de extremos. Os extremos deixaram de ser exceção, portanto, pensar em soluções logísticas resilientes e adaptáveis deixa de ser uma escolha e passa a ser uma necessidade estratégica.

A intensidade da estiagem coloca em xeque a capacidade de resposta da infraestrutura logística ao paralisar completamente o transporte fluvial em várias regiões. Já a intensidade da cheia, embora temporariamente mantenha os rios navegáveis, desorganiza rotas, inunda centros logísticos e isola populações inteiras, criando gargalos severos e imprevisíveis. São impactos distintos, mas ambos reforçam a urgência de uma matriz logística resiliente, capaz de se adaptar com agilidade a cenários extremos e fora do padrão.

Além dos caminhos aquáticos por onde as cargas percorrem, a malha rodoviária da região Norte é uma alternativa, mas apresenta inúmeras limitações de infraestrutura. Para se ter uma ideia, a Confederação Nacional do Transporte (CNT) revelou em 2021 que os custos operacionais do modal terrestre são 40,4% mais caros nesta região, se comparado ao custo estimado, caso as rodovias estivessem em boas condições.

Fato é: a cabotagem é um dos principais modais quando estamos falando em abastecimento de suprimentos em regiões extremas do Brasil. Ela pode reduzir em até 30% os custos logísticos por tonelada transportada. Menos impactada pela oscilação dos rios, a solução conecta os principais portos do país ao Norte do Brasil, assegurando o fluxo de cargas de forma contínua. Como resultado, empresas e distribuidoras optam cada vez mais por transportar mercadorias do Centro-Oeste por rodovias até portos estratégicos, de onde seguem por navio até o destino final. No entanto, ainda é um desafio para qualquer modal enfrentar o que a Amazônia tem apresentado como resposta às alterações do clima.

A multimodalidade - união de vários modais de transporte - pode ser a saída para a logística em todo território nacional em um cenário futuro de extremos climáticos. Ao permitir que cada modal atue de forma complementar, explorando seus pontos fortes e compensando fragilidades operacionais, o setor terá mais margem de manobra estratégica para momentos de crise.

Países com vocação logística reconhecida já operam com sistemas multimodais integrados há décadas. Na Alemanha, por exemplo, o transporte de cargas combina com eficiência rodovias, ferrovias e hidrovias, especialmente ao longo do rio Reno, criando um fluxo contínuo de mercadorias entre portos e centros industriais. Nos Estados Unidos, os grandes corredores logísticos interligam caminhões, trens e embarcações fluviais, com destaque para o uso do rio Mississipi e a malha ferroviária que conecta os estados do Centro-Oeste aos portos do Golfo. Já na China, a integração entre ferrovias de alta capacidade, navegação costeira e portos de águas profundas é central para o escoamento da produção interna até hubs de exportação como Xangai e Shenzhen.

Investir em multimodalidade não é uma aposta na previsibilidade. É , justamente, uma resposta à sua ausência. Em um cenário de instabilidade climática e choques logísticos, a integração entre diferentes modais permite desenhar rotas alternativas, adaptar operações em tempo real e manter o abastecimento mesmo quando um elo da cadeia é comprometido. Em países de dimensões continentais como o Brasil, a multimodalidade não é um luxo logístico, é uma necessidade estratégica para garantir resiliência, continuidade e eficiência diante do imprevisível - ou estaremos sempre à mercê do próximo colapso.

(*) Fabiano Lorenzi, CEO da Norcoast, empresa brasileira de navegação costeira

 

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