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Beba das Crônicas

Eu era menino do mato, hoje, sou demasiadamente urbano

André Alvez | 20/06/2020 09:00

Nesses tempos de confinamento, guardado em casa com medo do vírus mortal, recebi a ligação de um amigo querido:

- Venha, vamos pescar, a chácara fica pertinho de Rochedo, dá menos de uma hora de carro.

Esse amigo é quase um ermitão. Depois que formou as filhas e se aposentou, comprou uma chácara na beira do Aquidauana e de lá não sai para quase nada.

Fiquei de pensar e aqui estou, pensando...

Uma chácara, rodeada de mato, lagos e rios, repleta de bichos e peixes...Lugares assim, não deviam soar estranhos para mim. Sou de um tempo que Campo Grande era uma cidade pequena, os bairros cercados de verde, brejos, riachos, muito mato e bichos.

Os pássaros eram tantos que as andorinhas cruzavam a cidade no final do dia e iam se perder na risca do horizonte. E a gente imaginava que não existia mais nada além daquele horizonte.

Ainda guardo cheiros e sons daqueles tempos: esterco de vaca, bosta de cavalo, capim molhado ao amanhecer, canarinhos assoviando na janela e o canto das cigarras avisando a chegada do anoitecer.

A televisão ainda não existia para nós, mas as ondas do rádio traziam as vozes encantadoras dos antigos locutores, e a gente passava um bom tempo tentando imaginar o rosto do dono daquela voz.

Aos sete anos, já me embrenhava com os amigos na caça de passarinhos, a destemida corrida de pés descalços entre águas e cipós, espinhos e pedregulhos.

Um dia inesquecível, um amigo que nem lembro o nome, o mais velho da turma, avistou algo majestoso no último galho de uma frondosa árvore, pediu silêncio com os dedos na boca, esticou até onde o braço aguentou as tiras de borracha amarrada a um galho firme em forma da letra Y, uma arma rudimentar, feita por ele mesmo, e atirou no pássaro escondido entre as galhadas.

Não era estilingue, era funda.

A bolita voou num zumbido forte, indo estraçalhar, numa velocidade impressionante, as folhas das árvores, até estourar no peito do animal, que despencou entre a galhada, fazendo o barulho que até hoje guardo e tenho na memória com exatidão: Splash, splash, splash, thud, thud, tum!.

Não era bola de gude, era bolita, verde, perfeitamente redonda.

Corremos até a moita na qual o bicho caiu, ferido mortalmente.

- É uma pomba Juriti! Gritaram os meninos, os cabelos emaranhados, abertos ao vento, espalhados nos rostos cobertos de ranhos. E logo um deles sacou da cintura um canivete, cortou a cabeça, abriu a barriga, jogou as tripas fora. Outro garoto tratou de acender um fogo com as folhas secas, o ruivo trouxe sal, do nada surgiu uma cumbuca feita de panela, a água logo fervida, não para cozinhar, mas para depenar a pomba. Depois foi só enfiar num graveto e o espeto estava feito. Cerca de vinte minutos depois, a carne de pomba Juriti estava assada e todos nós comemos ao menos um pedaço. Até hoje sinto o gosto, não era nem um pouco ruim, mas também não era bom, porque a dó que senti ao ver o bicho morto, foi maior do que a fome.

Ali perto tinha um riacho e foi lá que aprendi a nadar, na marra, porque os moleques maiores me jogaram água adentro e tive que me virar. Antes, me fizeram comer um lambari vivo, que aquele peixe, dentro da gente, fazia nadar até quem não tinha braços – afirmaram, entre risos juvenis.

Nunca pensamos na morte, os perigos do rio eram abatidos pela confiança cega, as cobras, escondidas em meio das moitas, elas sim, tinham medo de nós. E os trilheiros das formigas, carregando nas costas insetos e folhas cortadas, sempre davam num imenso formigueiro.

E quando o vento soprava, subidos nas pontas das rochas, linhas esticadas entre os dedos, fazíamos guerra de brinquedos coloridos no céu.

Não era pipa, era pandorga.

Essas lembranças quase apagaram o ser totalmente urbano que me tornei, abraçado a uma vontade repentina de ver novamente as águas do Aquidauana, respirar a pureza do ar que despenca das árvores, ouvir o canto do curió, chupar manga direto do pé.

Tempo, tempo, tempo, ele passa e a gente vai junto. Ele permanece o mesmo e nós nos modificamos sem sentir.

Ah, talvez...

A vontade durou pouco, logo voltei ao normal. Sou demasiadamente urbano. Em algum momento da vida, me apeguei com força ao cinza do concreto e o verde da mata ficou apenas na lembrança. O conforto é meu dono, durmo com o ar condicionado ligado mesmo no frio, tomo banho quente, não morno, quente! Na geladeira, sempre tem um doce, uma fruta, bebida gelada, meus pés não possuem mais a dureza de andar entre pedras rachadas de beira de rio e tenho a nítida impressão que quanto mais a vida avança, mais forte corre as águas dos rios e nela o meu corpo não se encaixa mais, já está formatado no colchão macio, estirado, completamente limpo e pedindo o meu descanso no quarto.

Depois, descansar do descanso, a preguiça, minha companheira, me adormece aos poucos...

- Eu tenho um barco – disse o amigo – e só conseguiu me causar medo. A ideia de naufrágio me abraça sempre quando desafio as águas, o mesmo medo do avião cair toda vez que o piloto avisa: “tripulação, preparar para decolar”.

Num barco, ouço aquela mesma voz e o pavor me domina.

- E então, você vem? Ele insiste.

Quando a conversa está nesse ponto, já não tenho a possibilidade de inventar uma desculpa, embora a vontade de falar que no mato não tem Netflix e eu não sobrevivo sem minhas séries me ocorra de forma passageira.

- Vamos pescar! Sugere a voz empolgada do meu amigo.

- Sim, vou pensar...

Eu nunca gostei de pescar e ele sabe disso. Acho um tormento, horas a fio esperando o peixe fisgar o anzol, as picadas dos malditos mosquitos, os espinhos atrevidos ferindo a pele a cada passo, e quando acontece de algum peixe finalmente comer a isca, não sei o que fazer.

- Puxe a corda, erga a vara, arranque o anzol! Gritam os companheiros. Obedeço, mas aquela mesma dó de criança, diante da pomba Juriti morta, me ocorre quando vejo o peixe se debater com a boca presa ao anzol.

Ele insiste:

- De noite a gente toca um violão, aquelas músicas raiz.

- Ah sim, que ótimo seria... Digo, sem demonstrar a verdade percorrendo o meu pensamento: detesto música sertaneja. As de raiz até gosto, mas elas me causam melancolia, uma profunda saudade de quem nem cheguei a ser, um sujeito isolado no sertão, amando uma mulher cruel que o abandonou, ou ao lado do túmulo do pai e da mãe, não suporto tanta dor, prefiro mesmo um filme ou, graça tamanha, um livro de contos do Rosa.

Meu amigo sugere, parece ter escutado o meu pensamento:

- Você pode trazer livros para ler, sei que gosta.

- Sim, claro, se for, levarei.

Não lhe disse, aconteceu na minha vida ter surgido um aparelho chamado Kindle e ando com ele debaixo dos braços tal e qual um religioso caminha com a bíblia entre os dedos.

Do outro lado do telefone, o querido amigo percebe o meu silêncio. Tenta uma última cartada, fala das bebidas, comidas e baralho, uma trucada até amanhecer o dia...

- Eu vou, vamos marcar. Resolvo num supetão, os olhos brilhantes armados no rosto enxergando o passado.

Ele fica de me ligar outro dia para estabelecer a data da aventura, me deixando com o celular nas mãos, estático diante de uma porção de imagens de sonhos:

uma pomba caída, os olhos fora da cabeça, um peixe fisgado, o anzol atravessado na boca, o cheiro da infância, a saudade da juventude, das conversas com amigos, eu, demasiadamente urbano, lutando comigo mesmo.

Ainda não sei qual será o dia marcado, só sei que estarei presente, senão em corpo, em espírito de pensamentos, porque se me tornei esse senhor insuportavelmente urbano, em alguma parte de mim, (tenho certeza) ainda vive aquele menino que cresceu brincando com os amigos na densa mata.

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