“Corpo virou transporte barato e cruel", diz médico que salva mulas do tráfico
Cirurgião faz isso há 15 anos e percebe mais mortes de pessoas usadas pelo PCC na rota entre Corumbá-São Paulo
O médico Manoel João da Costa Oliveira, cirurgião da Santa Casa de Corumbá (MS), já operou dois casos de pessoas que transportavam cocaína dentro do corpo, o primeiro deles há 15 anos, tornando-se um dos pioneiros no Brasil nesse tipo de procedimento para salvar vidas. Nesta semana, ele atendeu uma boliviana de 34 anos que chegou em estado grave, com 78 cápsulas de droga no intestino, mais de dois quilos de cocaína.
RESUMO
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O médico Manoel João da Costa Oliveira, cirurgião da Santa Casa de Corumbá, tornou-se referência no atendimento a "mulas" do tráfico de drogas. Recentemente, ele operou uma boliviana que transportava 78 cápsulas de cocaína no intestino, totalizando mais de dois quilos da droga. Em entrevista, o cirurgião destaca que as pessoas que se submetem a esse tipo de transporte são, geralmente, vulneráveis e motivadas pela pobreza. O procedimento é extremamente arriscado, pois o rompimento de uma única cápsula pode causar morte instantânea por overdose. O médico também ressalta o alto custo para o sistema público de saúde, que precisa mobilizar recursos humanos e materiais para esses atendimentos.
Ainda internada, ela é apenas mais um capítulo de uma crônica de tragédias que, só neste ano, já consumiu quatro vidas e mobilizou cerca de 60 atendimentos em que o sistema público de saúde e as forças de segurança são obrigados a interromper rotinas para socorrer a legião de “engolidos” usada pelo tráfico na rota Santa Cruz de la Sierra–Corumbá–São Paulo. Nesta entrevista exclusiva ao Campo Grande News, o cirurgião descreve os riscos, o drama humano e o peso que esse tipo de tráfico impõe ao serviço público. Veja a seguir:
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“Essas pacientes são pobres, coitadas. Fazem isso para sobreviver”
Como foi o caso mais recente dessa mulher operada em Corumbá?
Manoel João da Costa Oliveira — Essa foi a segunda paciente deste ano. São pessoas que fazem uma besteira dessas por desespero. Pobres, coitadas mesmo. Essa mulher chegou ao pronto-socorro com dor abdominal intensa. As cápsulas são grandes e volumosas — ela tinha 78 no corpo. Estava há quase cinco dias com isso no intestino. Quando abrimos, encontramos mais de dois quilos de cocaína pura. Ela corria risco real de morte.
E o corpo humano comporta tudo isso?
O sistema digestivo é muito extenso. O intestino delgado tem cerca de oito metros de comprimento; o grosso, mais dois. No estômago dela havia quatro cápsulas. Mas o perigo é enorme: se uma só se rompe, a pessoa morre em minutos por overdose. É uma morte instantânea.
Como funciona o transporte de drogas por mulas e qual é o risco envolvido?
A mula engole cápsulas contando com a sorte de chegar ao destino antes que o corpo elimine o material. Viaja geralmente de ônibus, torcendo para não passar mal — porque, se uma cápsula romper, ela pode morrer. Tecnicamente, as cápsulas percorrem o sistema digestivo como qualquer alimento: entram no estômago, descem pelo intestino e serão expelidas horas depois, como quem come milho. Segundo relatos, muitos engolem cápsulas uma a uma, às vezes com suco de mandioca para facilitar a deglutição.
“A função da mula é engolir e evacuar a droga. Só isso”
Como esses pacientes chegam até o hospital?
Normalmente, procuram o pronto-socorro com dores ou vômitos e não contam a verdade. Quando a situação se agrava, descobrimos durante o exame ou a cirurgia. Muitos são estrangeiros, vindos da Bolívia. A função deles é engolir a droga, atravessar a fronteira e, já em São Paulo, evacuar as cápsulas. Entregam o material ao contato e voltam. Ganham algo em torno de dois ou três mil reais.

Eles recebem antes ou depois?
Depois. Sempre depois. Engolem as cápsulas e confiam que vão chegar ao destino sem morrer nem serem presos. É quase uma roleta-russa. Viajam de ônibus, muitas vezes sem comer, e torcem para que o corpo aguente.
Essas cápsulas são muito resistentes?
Hoje são bem mais elaboradas do que há alguns anos. No início eram feitas de papel-alumínio e fita adesiva. Muitos casos evoluíam para ruptura pela ação do suco gástrico. Agora são mais resistentes, com camadas de proteção plástica, tipo acrílico. Mas, ainda assim, basta uma trinca para a droga vazar — e a absorção intestinal é rápida. A overdose é fulminante.
“A droga desumaniza. E o sistema de saúde paga a conta”
O senhor considera esse tipo de ocorrência mais como problema de saúde pública?
Sem dúvida. A maior parte dos casos nem chega até nós — muitos conseguem eliminar as cápsulas naturalmente. Mas, quando há complicação, o custo é altíssimo: internações longas, cirurgias, tomografias, medicação, leitos, anestesia, oxigênio. E sempre há ao menos dois policiais de guarda. Tudo isso sai do sistema público.
O senhor tem ideia dos custos para o SUS?
É difícil calcular, mas envolve equipe cirúrgica, anestesista, enfermagem, medicamentos e equipamentos. Cada paciente desses mobiliza uma estrutura inteira. E o mais grave é que o traficante, que é quem lucra, não aparece. Quem fica com o prejuízo é o Estado — e quem se arrisca e morre, ou quase morre, é o mais pobre.
“Já vi famílias destruídas pela droga. É um problema social, mental e espiritual”
Como médico, o senhor acompanha o efeito da droga na comunidade?
Sim. Há 15 anos eu vejo isso em Corumbá. A droga é o que mais destrói famílias. É um problema social, mental e espiritual. Uma família com um usuário de cocaína ou de pasta base se desestrutura por completo: briga, violência, roubo dentro de casa, perda da dignidade. Fumada como cigarro, a pasta base é profundamente desumanizante.
Em Corumbá, é mais comum que o crack: barata, fácil de usar e, depois que o sujeito fuma uma, quer duas, dez, quinze, vinte. O uso rapidamente gera problemas sociais e familiares. Nesse contexto, surgem as mulas — pessoas que não são traficantes, mas acabam usando o próprio corpo para transportar droga.
O senhor diferencia o usuário da “mula”?
Totalmente. O usuário é uma vítima que perdeu o controle. A mula é outra vítima, usada como instrumento. Ela não é traficante — é um corpo alugado para transportar a droga. São pessoas que acreditam que vão ganhar dois ou três mil reais e terminam quase morrendo. Muitas vezes são mulheres, mães, gente simples e endividada, que se submete por necessidade.
Essas pessoas são presas após a cirurgia?
Na maioria dos casos, não. Quando é a primeira vez, geralmente são liberadas. Só em caso de reincidência podem ser presas. Essa mulher que operei, por exemplo, provavelmente será liberada — e pode voltar a fazer o mesmo. É triste, mas é a realidade.
“A droga é uma indústria que o Brasil ainda finge não ver”
O senhor mencionou que há também um impacto direto na segurança pública.
Sim. Cada paciente exige vigilância constante. Um policial federal, um guarda municipal, alguém precisa ficar com ele o tempo todo. Isso tira efetivo das ruas, aumenta o gasto público e sobrecarrega o sistema. É um círculo vicioso.
Como especialista, acha que há solução?
Sinceramente, é uma epidemia silenciosa. Enquanto houver pobreza e desigualdade, haverá quem aceite ser mula. E enquanto não houver integração entre saúde, segurança e justiça, o tráfico continuará se aproveitando desse vazio. A droga é uma indústria — e o corpo humano virou um dos meios de transporte mais baratos e cruéis que ela encontrou.


