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Política

Corumbá é corredor humano da cocaína sob o comando do PCC, invisível ao Estado

A rota entre Santa Cruz e São Paulo transforma a miséria em logística do crime e negligência estatal em lucro

Por Vasconcelo Quadros, de Brasilia | 11/11/2025 17:16
Corumbá é corredor humano da cocaína sob o comando do PCC, invisível ao Estado
Raio-x mostra dezenas de cápsulas com cocaína em estômago de boliviano (Foto: Divulgação)

A rota clandestina que parte de Santa Cruz de la Sierra, cruza Corumbá e termina em São Paulo sintetiza um fenômeno silencioso que avança na fronteira brasileira: a industrialização das “mulas” — agora chamadas de “engolidos” ou “embarrigados” pelos próprios agentes da repressão.

RESUMO

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A cidade de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, tornou-se um importante corredor do tráfico internacional de drogas, com cerca de dez ônibus clandestinos cruzando diariamente a fronteira em direção a São Paulo. O esquema, controlado pelo PCC, utiliza pessoas como "mulas" para transportar cocaína em seus organismos. Nos primeiros dez meses de 2023, foram apreendidos 914 quilos de cocaína e presas 54 pessoas. A rota, que parte de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, evidencia a fragilidade do controle estatal e expõe um sistema de baixo custo e alto rendimento para as organizações criminosas, resultando inclusive em mortes de transportadores.

Em três ônibus interceptados nos últimos dez dias, o resultado foi como pescar em balde: um deles tinha oito mulas, outro três e o último, cinco — 16,5 quilos de cocaína pura, uma carga que se transforma em pequena fortuna nas mãos do tráfico.

Agente da Receita Federal que participou da operação afirma que o caso integra um sistema de baixo custo e alto rendimento, operado pela maior facção do país, o PCC, favorecido pela fragilidade do controle estatal.

Segundo a Receita Federal, apesar de significativo aumento nas apreensões, cerca de dez ônibus clandestinos cruzam diariamente a fronteira em Corumbá rumo a São Paulo. Em cada veículo, há em média oito engolidos, transportando 1,1 quilo de cocaína pura — um fluxo estimado em quase 90 quilos por dia.

Nos primeiros dez dias de novembro, 15 engolidos foram presos, cinco deles em um único coletivo. Um dos detidos preso anteriormente admitiu ter feito três viagens por semana, evidenciando o caráter rotativo e industrial do esquema.

Dos 54 presos este ano, 14 são mulheres — número em alta. As apreensões somam 914 quilos de cocaína pura em dez meses deste ano, volume que facções multiplicam por dez nas bocas de distribuição, mas algo em torno de um terço do que é possível estimar por quem atua na ponta da repressão.

Corumbá: o epicentro da linha de produção humana

Os ônibus apreendidos são levados ao Posto Esdras, onde equipes da Receita e da Polícia Federal tentam rastrear a origem dos veículos — quase sempre restaurados em São Paulo e guardados em garagens ilegais, cerca de 40 delas em Corumbá e Ladário.

O Anel Viário concentra os embarques clandestinos: há momentos em que cinco ônibus aguardam saída simultânea. Para chegar ali, os aliciados cruzam a fronteira por estradas vicinais por dentro de assentamentos rurais, em táxis clandestinos. Eles são preparados na região de Santa Cruz de la Sierra, uma conhecida área de refúgio e base de atuação do PCC na Bolívia.

Fontes da fronteira estimam que até três toneladas de cocaína passem mensalmente por esse corredor, volume comparável ao de operações de porte médio do tráfico. O número se aproxima do total apreendido pela PRF e forças estaduais em todo o Mato Grosso do Sul no ano passado (53 toneladas).

A escala revela uma linha de produção humana: cada corpo é um contêiner; cada viagem, parte de uma engrenagem que o Estado ainda não consegue deter.

A sequência de prisões confirma a transformação da rota em corredor estruturado do tráfico internacional. Até o último sábado, 54 pessoas haviam sido presas em Corumbá  — recorde histórico. Quase todos viajavam em ônibus clandestinos rumo a São Paulo, com paradas no Terminal Bresser, onde os engolidos são recepcionados e a droga expelida dos corpos. Quando há complicações, a mula é levada para clínicas clandestinas mantidas pelo PCC na mesma região.

Corumbá é corredor humano da cocaína sob o comando do PCC, invisível ao Estado
Homens da Policia MIlitar, Receita e Guarda Municipal durante revista a ônibus em Corumbá (Foto: Divulgação)

Vidas descartáveis e a tragédia recorrente

Na mesma semana, cinco bolivianos entre 22 e 23 anos, Quintin, Edgar, Teodoro, Gregório e Félix, foram detidos em um coletivo. Uma mulher boliviana, de 34 anos, foi submetida a cirurgia de emergência no pronto-socorro de Corumbá após enfrentar sérios problemas abdominais pelo longo tempo em que as cápsulas de cocaína ficam presas nos intestinos. “Chegou dizendo que era apenas dor abdominal”, relatou um servidor. “Foi uma corrida contra o tempo.”

O cirurgião Manoel João da Costa Oliveira, que conduziu a operação, descreve o caso como “tragédia humana e recorrente”. Era a segunda paciente do ano com o mesmo quadro: 78 cápsulas de cocaína pura espalhadas entre estômago e intestinos, dois quilos na balança. “O intestino tem quase dez metros, por isso conseguem engolir tanto”, explica. “Mas basta uma cápsula romper para ser fatal. Uma única equivale a uma seringa de cocaína líquida.”, disse ele ao Campo Grande News.

Nesta terça-feira (11 de novembro), a tragédia se repetiu: Juvenal Calle Ortega, 23 anos, morreu após ingerir cerca de 100 cápsulas durante viagem de ônibus clandestino rumo a São Paulo. É a quarta morte do ano por overdose ou obstrução do sistema digestivo. Sua companheira, Jhovana Ballesteros Ricaldi, que engoliu 72 cápsulas, segue internada em estado grave em Três Lagoas.

Casos como esse expõem o elo mais frágil de uma cadeia milionária: vidas empobrecidas transformadas em embalagem de um negócio que opera em escala de atacado. Autoridades alfandegárias estimam que apenas 5% da droga seja interceptada — proporção reconhecida pela Organização Mundial das Aduanas. Com base nesse cálculo, o fluxo de três toneladas por mês poderia ser multiplicado por 95 vezes, sob o comando do PCC.

O preço da droga em São Paulo parte de R$ 13,7 mil por quilo, mas pode chegar a R$ 60 mil. Os 914 quilos apreendidos este ano renderiam aos fornecedores entre R$ 12,5 milhões e R$ 54,8 milhões.

Corumbá é corredor humano da cocaína sob o comando do PCC, invisível ao Estado
 Delegada-chefe da Receita Federal em Corumbá, Tatiane Laranjo Amadeo Suhogusoff (Foto: Divulgação)

A fronteira esquecida e a falência da repressão

A delegada-chefe da Receita Federal em Corumbá, Tatiane Laranjo Amadeo Suhogusoff, vê o problema como “questão sensível, de gente vulnerável que se arrisca por pouco dinheiro, sacrificando a liberdade e a vida”. Segundo ela, “o engolido vive um processo penoso tanto na hora que ingere quanto na hora de expelir as cápsulas”.

A Receita Federal, e não a Polícia Federal, tem assumido a vanguarda das apreensões na aduana de Corumbá, mas a estrutura é insuficiente. “Sempre houve mulas, mas agora o número aumentou.” Um cão farejador, que responde pelo sugestivo nome de Gardenal, tem sido essencial nas operações: detecta a droga no estômago pelos vestígios de manuseio e se senta diante do passageiro suspeito.

A delegada destaca a sobrecarga: “A custódia desses casos consome de um a três dias entre hospital e Polícia Federal. Temos poucos servidores diante de uma rede grande de ônibus clandestinos.”. O controle exigiria a compreensão estatal de que não se trata mais de varejo, mas de um esquema que precisa de mais envergadura para ser combatido por envolver crime, saúde pública e dramas sociais.

A engrenagem conecta contrabando, engolidos e trabalho escravo em oficinas paulistas — uma cadeia de exploração que começa na miséria e termina nas pontas lucrativas da economia subterrânea. Delegados e fiscais relatam desestímulo: “Prender engolido não compensa”, dizem. “É enxugar gelo.” A rigor, quem é pego pela primeira vez, passa pela cadeia e é liberado.

Quando os ônibus são apreendidos, liminares judiciais, muitas delas de Brasília, devolvem os veículos à rota, reforçando a sensação de impunidade.


Onde o Estado que hesita, o crime que comanda

O caso de Corumbá espelha a crise nacional de segurança: fragmentação institucional, falta de coordenação e ausência de autoridade central. O deputado federal Dagoberto Nogueira (PSDB-MS), líder da bancada do Estado no Congresso e ex-secretário de Justiça e Segurança, resume: “As polícias têm muita vaidade. A PM apreende e põe o símbolo dela; a PF põe o dela; a PRF põe o dela. Eles acham que isso é integração.”

Para ele, o país combate de trás para frente. “Tem que agir na saída. A cocaína entra pela Bolívia, as armas por Ponta Porã. Se não reforçar ali, não resolve.” Ele defende rastreabilidade financeira e inteligência de fronteira: “Quando o dinheiro for todo rastreável, acaba a sobrevida das facções.” Ele acha que num plano efetivo de combate ás facções, o papel moeda deveria parar de circular.

O senador Nelsinho Trad (PSD-MS), presidente da Comissão de Relações Exteriores e membro da CPI do Crime Organizado, reforça: “A resposta passa por inteligência e cooperação entre polícias e Forças Armadas nas fronteiras.”

A fronteira Ponta Porã–Pedro Juan Caballero é hoje o corredor mais violento do tráfico transnacional, dominado pelo PCC e disputado pelo Comando Vermelho. Duas semanas após a operação mais letal do Rio, o governo federal decidiu enviar forças à fronteira com o Paraguai. É o cerco ao homem mais procurado do país, Edgar Alves de Andrade, o Doca, cuja prisão ou morte era o alvo da operação que deixou 121 mortos no Complexo da Penha e Serra da Misericórdia, no Rio.

O deputado estadual Zé Teixeira (PSDB) alerta: “A repressão pode deslocar o crime para a fronteira, aumentando invasões e disputas violentas.” Mato Grosso do Sul reúne todas as camadas da crise: cocaína boliviana, armas paraguaias, microtráfico em expansão empresarial e um Estado de baixa densidade institucional, terreno fértil para o avanço das facções.

Nesse contexto, o engolido é elo humano de uma engrenagem invisível. Apanhados, são levados a hospitais ou delegacias em estado lastimável. Chegam famintos, assustados e doentes, e se calam não por lealdade, mas por medo. O Brasil trata a mula como caso de polícia; o crime, como ativo logístico; o Estado, como invisível.

A ausência de comando transforma o combate ao crime em mosaico improvisado. A União tem recursos, mas hesita; os Estados reivindicam autonomia, mas não enfrentam estruturas transnacionais; os municípios pagam a conta social sem instrumentos. Quem aproveita? As facções, que têm o que o Estado perdeu: estratégia e comando.

Especialistas e o bom senso apontam que o Brasil sabe o que precisa fazer: comando unificado, inteligência integrada e responsabilização federativa. Falta o que o crime tem, vontade política contínua, o que demonstra que o entrave não é técnico e, sim, político. Desde a redemocratização, governos evitam federalizar o fracasso. O tema segurança só ganha prioridade nos planos de governo.

O resultado explica Corumbá: o Estado não assume a segurança como política de nação; o crime assume a segurança dos seus negócios como política de expansão.

A CPI do Crime Organizado, sob comando do senador Fabiano Contarato (PT-ES) e relatoria de Alessandro Vieira (MDB-SE), tenta romper a inércia e radiografar o sistema — o crime, a corrupção policial, o propinodromo político que faz vistas grossas às milícias e facções, e a omissão dos governos.

O dilema dos engolidos é parte dessa equação que São Paulo e Mato Grosso do Sul fingem não enxergar: o crime já é ator de poder, econômico, territorial e social. Enquanto Brasília debate, o PCC verticaliza, diversifica e profissionaliza. O Estado hesita. E quem hesita em mandar, perde o comando.