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Capital

Com poder público omisso nas ruas, empreendimento lucra e cidadão sofre

Para se “proteger”, Campo Grande tem lei, mas falta de fiscalização traz dor de cabeça

Aline dos Santos | 22/02/2019 13:18
Ao lado de supermercado, confusão instalada no trânsito da rua Pestalozzi: caminhões quase fecham a via. (Foto: Marina Pacheco)
Ao lado de supermercado, confusão instalada no trânsito da rua Pestalozzi: caminhões quase fecham a via. (Foto: Marina Pacheco)

Quarta-feira, dia 20 de fevereiro, 8h30 da manhã. Nesta data e horário, a cena na rua Pestalozzi, na lateral do hipermercado Extra, bairro Tiradentes, é de caminhões parados nos dois lados da via, apesar de numa lateral o meio-fio ser faixa amarela e com placa de proibido estacionar.

No mesmo cenário, também há caminhão em fila dupla, limitando o acesso dos demais veículos a uma pequena abertura. Por ali, o trânsito para até os carros pequenos passarem em fila indiana. Se for um veículo maior, como caminhonete, o remédio vai ser esperar os caminhões manobrarem até liberarem uma maior parcela da rua.

Enquanto condutores dos caminhões e carros se irritam, a situação, aparentemente, tem dois sujeitos ocultos que não se incomodam: o empreendimento que lucra e a prefeitura de Campo Grande, que não toma medida para organizar o trânsito no local.

A curta distância, na rua Antônio Bicudo, no Jardim São Lourenço, os caminhões ficam na rua lateral ao Fort Atacadista. Na via, há uma doca destinada ao desembarque de mercadoria. Por isso, os caminhões fazem fila na rua. De ambos os lados da Antônio Bicudo, é permitido estacionar.

“A gente só vê morador bravo”, conta o vigia José Bonifácio, 63 anos, que trabalha no condomínio Rio das Pedras, que tem 18 apartamentos. Ele explica que a indignação aumenta quando os caminhões estacionam nos dois lados da via, deixando um pequeno espaço no centro da via para a passagem do fluxo de carros. “Tem dia que fecha a rua”, diz.

Fia de caminhões na rua Antônio Bicudo, também ao lado de supermercado. (Foto: Marina Pacheco)
Fia de caminhões na rua Antônio Bicudo, também ao lado de supermercado. (Foto: Marina Pacheco)
“Tem que ficar esperando na rua e se virar”, diz o caminhoneiro Jorge de Souza. (Foto: Marina Pacheco)
“Tem que ficar esperando na rua e se virar”, diz o caminhoneiro Jorge de Souza. (Foto: Marina Pacheco)

Com carga de café para descarregar, o caminhoneiro Jorge de Souza, 63 anos, diz que em apenas um atacado de Campo Grande não enfrenta esse problema, oferecendo espaço interno para os veículos. “Tem que ficar esperando na rua e se virar”, afirma.

Para se “proteger”, Campo Grande tem lei, mas que não tem impedido dor de cabeça para vizinhos.

Desde 2007, a prefeitura exige EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) de empreendimentos ou atividades com impacto que cause alteração significativa nas características urbanas do entorno.

Em 2009, o campo-grandense acompanhou a remoção da rotatória da confluência das ruas Joaquim Murtinho, Marquês de Pombal e a avenida Marquês de Lavradio.

Na ocasião, a instalação do semáforo no cruzamento foi custeada pelo hipermercado Extra, obrigado pela aplicação do EIV a compensar o impacto de sua instalação.

O trecho também precisou de reordenamento viário, com a rua Pestalozzi, citada no começo da reportagem, sendo transformada em mão única.

De acordo com o Planurb (Instituto Municipal de Planejamento Urbano), no estudo para liberar a obra, o hipermercado informou a quantidade de caminhões por dia e a capacidade do empreendimento. Sobre a situação de 2019, o órgão aponta que a fiscalização cabe a outras áreas da prefeitura.

“Quem tem que fiscalizar é a Semadur [Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Gestão Urbana] e a Agetran [Agência Municipal de Transporte e Trânsito]”, afirma a secretária adjunta no Planurb, Vera Bacchi, que é arquiteta e urbanista.

Destino de universitários, rua Ceará tem grande fluxo de carros e pessoas. (Foto: Paulo Francis)
Destino de universitários, rua Ceará tem grande fluxo de carros e pessoas. (Foto: Paulo Francis)

Cidade justa?

De acordo com a professora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e doutora em planejamento urbano, Maria Lúcia Torrecilha, a legislação para uso e ordenamento do solo é para tornar a cidade mais justa.

Ela exemplifica que a prefeitura pode, por exemplo, determinar o horário de carga e descarga em empreendimentos, proibir o estacionamento de veículos ou exigir que o empreendedor abra espaço dentro do seu próprio terreno para comportar os caminhões.

“A prefeitura tem que ser reguladora, fiscalizar. Dar uma solução e fazer com que cumpram essa decisão. Nossa realidade no Brasil é de que as leis não prevalecem para os amigos dos reis”, afirma a professora.

Ela recorda que no Centro de Campo Grande, na rua 13 de Junho foi preciso um acidente com morte, quando um caminhão desceu e esmagou um carro, para que as ruas se tornassem mão única, num sistema binário, em que uma rua vai e a outra vem.

“É preciso ter cidades mais justas, socialmente habitáveis. Vai ser facilitado o lucro de um supermercado ou o bem-estar da população? É a grande questão”, diz a especialista.

Responsabilidade privada 

Ex-presidente do Crea/MS (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia), o engenheiro Jean Saliba analisa que a prefeitura deveria ser exigente com a iniciativa privada.

“Não é possível que uma escola com mil alunos não tenha espaço de embarque e desembarque. Na Ceará, perto da Uniderp (Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal), com o espaço que eles têm lá, não é possível que não tenha embarque e desembarque. Aquele quebra-molas elevado, o traffic calming, é feito com o dinheiro do povo”, afirma o engenheiro.

Saliba destaca que há regras até para pequenas obras. “É muito importante que as pessoas entendam que para cada empreendimento existe uma exigência”, diz.

Congestionamento na avenida Tamandaré em dia de concurso. (Foto: Guilherme Henri)
Congestionamento na avenida Tamandaré em dia de concurso. (Foto: Guilherme Henri)

Chegou tarde 

Ferramenta prevista no Estatuto das Cidades desde 2001, o EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) passou a ser exigido de determinados empreendimentos no ano de 2007. Ou seja, chegou tarde para locais com grande aglomeração de pessoas, como a Uniderp e a UCDB (Universidade Católica Dom Bosco).

“A lei não é retroativa. Quem se instalou antes e continua com as atividades vai funcionar de acordo com de quando se implantou”, afirma a diretora adjunta do Planurb, Vera Bacchi.

O estudo, que é feito pelo empreendedor, contempla os efeitos positivos e negativos à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise de itens como adensamento populacional; valorização imobiliária; poluição; sistema de circulação e transportes: sistema viário, tráfego gerado, acessibilidade, estacionamento, carga e descarga, embarque e desembarque, transporte coletivo e individual.

A exigência é para empreendimentos de acordo com a área construída, número de vagas de estacionamento e capacidade de lotação (veja quadro no fim a matéria). Uma comissão analisa o estudo que subsidia a GDU (Guia de Diretrizes Urbanísticas), documento orientador do projeto.

“O empreendedor tem que arcar com as medias mitigadoras e compensatórias. Mitigar é reduzir o impacto. Quando não consegue reduzir, tem que compensar de outra forma o desequilíbrio que vai trazer para aquela região”, explica Christina Manvailer, chefe da Divisão de Uso do Solo.

Empreendedores – A UCBD (Universidade Católica Dom Bosco) informou que neste ano fez um nova entrada de veículos. De forma rotineira, a avenida Tamandaré, que dá acesso à instituição de ensino, registra trânsito lento. Situação que se agrava em dias de concurso. A expectativa é de que a prefeitura faça pavimentação da via, abrindo mais um acesso.

A reportagem também entrou em contato com as assessorias de imprensa do Extra, Fort Atacadista e Uniderp, mas sem retorno até a publicação da matéria.

Com poder público omisso nas ruas, empreendimento lucra e cidadão sofre
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