Em cemitérios públicos, ninguém se acostuma com o abandono ou a morte
Os 3 locais têm mais de 400 mil m², 90 mil sepulturas e muitas histórias, como do coveiro que enterrou a própria filha, envenenada

São mais de 400 mil m² e quase 90 mil sepulturas espalhadas por três cemitérios públicos de Campo Grande. Neles, histórias de grandes personalidades, autoridades e também de "gente como a gente". Mas entre as boas histórias, o abandono salta aos olhos de quem percorre esses espaços, como fez o Campo Grande News neste início de semana.
Já são 106 anos, desde a inauguração do primeiro cemitério público de Campo Grande, o Santo Antônio, em 1914. Ao longo do tempo, o lugar de quem já partiu parece esquecido, mas ninguém se acostuma com o abandono, nem com as despedidas.
"Ninguém se acostuma com a morte, cada sepultamento tem um sentimento. Você fica machucado de ver as famílias enterrando um parente, principalmente, quando enterram uma criança", comenta o experiente Valdir Barbosa de Melo, de 53 anos, que por toda uma vida desempenha atividades dentro de cemitérios.
Trinta anos atrás, foi a profissão de coveiro que o colocou dentro do Santo Amaro, localizado na Avenida Presidente Vargas. Mas são as funções de pedreiro, construtor especializado em produção de lápides, túmulos e capelas, as responsáveis pelo sustento da família atualmente.
Como esperado, os anos de experiência renderam muitas histórias a Valdir, daquelas que facilmente ocupariam horas de uma boa conversa ou longas páginas de uma matéria. Mas nenhuma ganha daquela que pode ser considerada a mais pessoal. Como muitos, ele também já se despediu de alguém ali. No mesmo local de trabalho, está enterrada a filha, adolescente morta aos 15 anos, envenenamento por engano.
"Atacou a alergia, ela foi tomar antialérgico, mas na verdade, dentro do vidro tinha veneno para rato. Foi fatal", relembra emocionado o pedreiro. Hoje, é ali no espaço público, que Valdir encontra oportunidade para pensar sobre a vida. "Aqui você consegue refletir, você olha para as fotos de quem morreu nas lápides e se pergunta: será que essa pessoa queria ter morrido? Será que ela lutou para viver, mas não conseguiu? E muitas vezes, quem pode e tem saúde, quer acabar com sua própria vida", ressalta.


Abandono - Mas, além das lembranças, muitos dos cemitérios públicos também trazem marcas que comprovam os efeitos colaterais do tempo. O cenário parece ser de abandono em pelo menos dois destes espaços.
Diferente dos cemitérios particulares, nos espaços públicos o verde da grama baixa dá lugar para a vermelhidão da terra. A sensação de paz e tranquilidade, o que muitos almejam alcançar após cumprirem suas "missões na terra", na verdade, parece não existir.
Não é preciso muito tempo caminhando pelo local para encontrar túmulos em péssimo estado de conservação, danificados e até quebrados. Em algumas situações, a falta de concreto chega a expor restos mortais. Vidros quebrados, portas enferrujadas, túmulos abandonados. O lixo também contribui para que a visita a estes espaços, na maioria das vezes, seja desconfortável.
Porém, ainda há quem dedique tempo e energia para cuidar do pedaço de terra onde pessoas queridas foram sepultadas. Pessoas como as irmãs Maria Nilza e Maria Natália de Lima, de 56 e 65 anos, respectivamente, que fazem questão de visitar o túmulo onde os pais estão enterrados há 8 anos, mensalmente. A diferença com as demais covas é nítida. Tintura em dia, flores e ar de limpeza.

"Eles falavam que aqui seria a casinha eterna deles, por isso, a gente deixa sempre arrumadinho. E, quando meu pai estava vivo, sempre falava para nunca desprezar esse espaço, ele comprou ainda em vida, e assim estamos fazendo, uma vez por mês estamos aqui", explica Maria Nilza. "E fazemos isso pelo amor que temos a eles", complementa.
Além dos pais, outros três familiares das irmãs estão enterrados no local. O túmulo do irmão, de um tio e até do sogro de Maria Nilza também recebem os cuidados da dupla. "Ele também foi uma pessoa muito boa com a gente, não tenho o que reclamar. Sempre ajudou e o que eu posso fazer, faço. Fiz em vida e ainda faço", ressalta ela.
O mesmo acontece com as donas de casa Enir Viana dos Santos, de 63 anos, e Queila dos Santos Arruda, de 45 anos. Mesmo morando no interior, mãe e filha fazem questão de visitar os túmulos onde foram enterrados os pais e dois irmãos de Enir. "É importante visitar, deixar tudo arrumado, preservar a última morada deles", destaca Queila. Já dona Enir, lembra que o espaço foi comprado pelos pais ainda em vida. "Eles escolheram o lugar e cada um tinha o desejo de ser enterrado com um filho. Assim foi feito. Minha mãe está com meu irmão e meu pai na mesma sepultura da minha irmã", conta.

Ganha pão - E foi de olho no mercado de construção de túmulos e capelas, que a família do empresário João Paulo construiu uma das principais marmorarias de Campo Grande, responsável pela construção de monumentos que hoje homenageiam grandes personalidades, pessoas que fizeram história na cidade. Ao lado do cemitério público mais antigo da Capital, o Santo Antônio, a empresa cresceu junto com a cidade.
"Tudo começou em 1964, quando eu nasci, e meu pai começou a fazer jazigos. Hoje, acredito que os monumentos construídos com mármore servem para as pessoas que ficaram, os vivos. Com meu filho mesmo, quando fomos para São Paulo, levei ele ao túmulo da nossa família e contei nossa história. Foi assim que ele conheceu um pouco mais sobre a família", conta.
Especialista no segmento, João Paulo conta que a vinda do pai para Mato Grosso do Sul, antes a família morava em São Paulo, foi estratégica, de olho no mercado que por muito tempo foi lucrativo. Segundo ele, mesmo que hoje em dia a procura tenha diminuído, teve quem investiu "200 cabeças de boi", como falavam em décadas anteriores, em monumentos.
Caminhando pelo Santo Antônio, é possível ter dimensão do luxo e investimento que muitas famílias fizeram para ter um espaço mais bonito onde familiares estão enterrados. Logo na entrada do cemitério, por exemplo, o túmulo de José Antônio Pereira, fundador de Campo Grande, indica ser possível encontrar muitos espaços bem cuidados, no loca.
É no Santo Antônio, aliás, que boa parte das grandes personalidades e autoridades da Capital estão enterradas. Além de José Antônio Pereira, nomes como Glauce Rocha, Vespasiano Martins, Amando de Oliveira, Hércules Maymone - quem doou parte de sua fazenda para que o cemitério fosse construído - e Arnaldo Estevão de Figueiredo.
Estrutura - O menor dos cemitérios públicos, por incrível que pareça, é o mais velho deles, o Santo Antônio. Fundado em 1914, o cemitério, localizado na Avenida da Consolação, próximo a Avenida Eduardo Elias Zahran, possui área de 41.328 M2 e 14.544 sepulturas, conforme a prefeitura de Campo Grande. O segundo mais antigo é o Santo Amaro, localizado na Avenida Presidente Vargas e fundado em 1961. O espaço conta, atualmente, com 43.041 sepulturas ao longo de seus 270.383,01 m2.
Já o cemitério público mais recente, completa 50 anos em 2020. Localizado na Avenida Cel Antonino, o Cemitério São Sebastião, mais conhecido como Cruzeiro, foi fundado em 1970. O local possui 143.735,00 m² e 29.450 sepulturas.

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