Perícia revela que contrato do transporte é desrespeitado quase desde assinatura
Laudo foi elaborado pelo Ibec Brasil, por determinação do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul
A perícia feita pelo Ibec Brasil (Instituto Brasileiro de Estudos Científicos) aponta que o contrato de concessão do transporte coletivo em Campo Grande é desrespeitado, praticamente, desde a assinatura. O documento foi firmado em outubro de 2012 e seis meses depois começaram as divergências entre Consórcio Guaicurus e Prefeitura da Capital.
RESUMO
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A perícia do Ibec Brasil revelou que o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão do transporte coletivo de Campo Grande teve início em 2013, com alterações tarifárias e contratuais que comprometeram a sustentabilidade do serviço. O laudo, com 246 páginas, foi solicitado pela juíza Paulinne Simões de Souza e analisou 14 mil documentos, identificando 16 eventos que impactaram o contrato, sendo cinco de responsabilidade do Poder Executivo Municipal. Entre as mudanças, destaca-se a alteração na data-base do reajuste e a retirada da obrigatoriedade de entrega da Matriz OD, essencial para o planejamento do transporte. A perícia também apontou a falta de estudos técnicos que justificassem as alterações, comprometendo a transparência e o equilíbrio financeiro. Agora, a Prefeitura e o Consórcio Guaicurus devem apresentar suas defesas ao processo.
Assim, a constatação é que o desequilíbrio econômico-financeiro teve início em 2013. O laudo, anexado nesta sexta-feira (23) ao processo que tramita na 1ª Vara de Fazenda Pública do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), é resultado de quase um ano de trabalho.
O documento, com 246 páginas, foi solicitado pela juíza Paulinne Simões de Souza após dois primeiros pareceres técnicos do processo apresentarem indícios de favorecimento às partes envolvidas. A medida visou garantir imparcialidade na análise. O processo foi movido pelo Consórcio Guaicurus para exigir o cumprimento do reajuste contratual.
Ao todo, os peritos analisaram 14 mil folhas de documentos, incluindo o contrato de concessão assinado em 2012, aditivos, notas fiscais, comprovantes e registros de fiscalização feitos pela Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito) e pela Agereg (Agência de Regulação dos Serviços Públicos Delegados de Campo Grande).
Por meio de gráficos e trechos do contrato, o laudo aponta que 16 eventos impactaram o equilíbrio financeiro da concessão, sendo cinco deles de responsabilidade direta do Poder Executivo Municipal, com alterações nos meses seguintes à assinatura do contrato, dandoa uma bola de neve que agora desemboca em uma CPI na Câmara Municipal.
22 de abril de 2013 – O contrato foi assinado nos últimos meses da gestão Nelsinho Trad (2005-2012). Com a posse do sucessor, Alcides Bernal (PP), houve as primeiras alterações, com mudanças na estrutura tarifária, na redação da data-base do reajuste, que passou de março para outubro, e na definição de eventos excepcionais que poderiam impactar o contrato.
A perícia não encontrou estudos, memoriais de cálculo ou qualquer fundamentação técnica, tanto por parte da Agereg quanto da Agetran, que justificassem essas mudanças. O resultado foi o primeiro desequilíbrio no contrato, com defasagem da tarifa frente aos custos operacionais, comprometendo a sustentabilidade da concessão e gerando insegurança jurídica.
30 de outubro de 2014 – Na gestão de Gilmar Olarte (sem partido), foi assinado o segundo aditivo, que retirou a obrigatoriedade da entrega da Matriz OD (Origem-Destino) em prazos definidos. A Matriz OD é ferramenta fundamental para planejar e monitorar o transporte coletivo, pois mapeia os fluxos de deslocamento da população.
Pelo contrato original, o Consórcio deveria apresentar a pesquisa no 24º mês da operação e depois no 132º mês. O aditivo condicionou essa entrega apenas quando houvesse notificação do Poder Concedente. A mudança prejudicou a capacidade de fiscalização, sem qualquer parecer técnico que a justificasse.
30 de outubro de 2018 – Ainda sob influência de atos da gestão de Gilmar Olarte, outro aditivo retirou de vez a exigência de entregar a Matriz OD no segundo ano de concessão e alterou a fórmula de cálculo da tarifa.
Na prática, essa mudança eliminou a necessidade de atualizar os dados da matriz até outubro de 2023, além de introduzir um limite fixo para a variação do IPKe (Índice de Passageiros por Quilômetro Equivalente), que passou a oscilar entre -1% e +1%. Antes, o índice refletia diretamente a produtividade do sistema e era essencial na definição da tarifa técnica.
A alteração criou uma “banda de flutuação” que desconectou a tarifa da realidade operacional. Durante a pandemia, por exemplo, o IPKe despencou até -16,85% em 2021, impacto que não foi absorvido pela fórmula. Mais uma vez, os peritos não localizaram qualquer estudo que fundamentasse essa decisão, ferindo o equilíbrio econômico-financeiro previsto na Constituição e na Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995).
O laudo é claro ao dizer que “a medida rompe com a modelagem econômica estabelecida no edital, que associava diretamente o desempenho do sistema à tarifa”. O modelo anterior premiava a eficiência: quanto maior a produtividade, menor a pressão sobre o valor da tarifa.
25 de março de 2022 – Já na gestão de Marquinhos Trad (à época no PSD), um novo aditivo alterou a estrutura tarifária, instituindo a “tarifa de remuneração”. Essa tarifa se soma à tarifa pública – aquela paga diretamente pelo usuário –, e representa o valor que o poder público repassa ao Consórcio pela prestação dos serviços, conforme a Portaria Agereg nº 7/2022 e a Lei Federal nº 12.587/2012.
O aditivo também criou uma categoria específica de tarifa para órgãos públicos, com valores diferenciados, para viabilizar subsídios às gratuidades previstas nas Leis Complementares nº 438 e nº 440, que beneficiam estudantes, pessoas com deficiência e ostomizados.
Contudo, ao criar uma receita desvinculada da tarifa pública, o município alterou o modelo econômico-financeiro firmado originalmente. A perícia destaca que não foram apresentados estudos técnicos sobre os impactos dessas mudanças no fluxo de caixa da concessionária, contrariando tanto o edital quanto a legislação vigente.
Além disso, não há previsão de auditoria independente para validar os cálculos da tarifa, dos déficits e dos subsídios, comprometendo a transparência e o equilíbrio financeiro, exigidos pela Lei nº 8.666/1993 e pela própria Lei das Concessões.
7 de dezembro de 2022 – Com Adriane Lopes (PP), foi incluída uma cláusula para compensar financeiramente as gratuidades de idosos no transporte coletivo, com recursos federais previstos na Emenda Constitucional nº 123/2022.
O município reconheceu uma dívida de R$ 11,7 milhões, referente ao não pagamento do benefício entre janeiro e outubro de 2022. Também foram destinados R$ 3,1 milhões, além de rendimentos, para custear o benefício até junho de 2023, condicionado à emissão de notas fiscais e à comprovação dos gastos.
Apesar de mitigar parte do impacto financeiro, a perícia aponta que faltaram estudos sobre os valores estabelecidos e os efeitos dessa compensação no equilíbrio do contrato. “Não há memória de cálculo, nem avaliação dos efeitos sobre a tarifa de remuneração e sobre a sustentabilidade do contrato no longo prazo”, afirma o laudo.
Outros fatores - Além dos aditivos, a perícia identificou outros elementos que comprometeram o fluxo financeiro da concessão:
A não realização da revisão tarifária prevista para o 84º mês do contrato, até outubro de 2019;
A ausência de aferição dos Marcos Contratuais Executivos;
A assimetria de dados entre os sistemas da Prefeitura e do Consórcio (SMTC, SIG, SIT);
A não edição de normas técnicas aplicáveis;
O descumprimento de obrigações contratuais;
E a subversão de regras legais.
O laudo também cita documentos do TCE-MS (Tribunal de Contas do Estado) que reforçam a falta de estudos técnicos, econômicos ou operacionais que embasassem as decisões administrativas, caracterizando “processos metodologicamente incompatíveis” na atuação da agência reguladora.
“A não observância das normas, aliada à instabilidade na aplicação das leis, gera dúvidas e incertezas sobre a interpretação e execução dos contratos, comprometendo a segurança jurídica”, conclui o relatório.
Agora, com o laudo anexado, tanto a Prefeitura quanto o Consórcio Guaicurus devem apresentar suas manifestações e defesas à juíza.
O documento é assinado pelo perito judicial Fernando Abrahão, responsável, economista especialista em Regulação de Serviços Público. Ele foi o técnico que conduziu as investigações da CPI da Enersul em 2008, quando foram encontrados erros tarifários de mais de R$ 191 milhões devolvidos aos consumidores de energia de Mato Grosso do Sul.
*Matéria editada às 18h21, do dia 26, para corrigir que Adriane Lopes já estava na gestão em dezembro de 2022.
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