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Interior

Criança deixa abrigo após 5 anos de disputa entre três "mães"

Teste de DNA comprovou maternidade de criança, mas ainda assim ela permaneceu vários anos longe do convívio familiar

Nyelder Rodrigues | 11/12/2020 15:35

Seu nome não foi definido pela sua mãe, e sim pelo despacho de um juiz. Sua identidade social foi expurgada poucos dias após nascer. Uma sequência de versões contradizentes e um longo trâmite burocrático do judiciário colocaram uma criança indígena no meio e um imbróglio que, por ora, parece ter chegado ao fim.

Cinco anos e 10 meses de vida e de distante convívio familiar e social com a comunidade a qual, biologicamente, pertence. Ao nascer, o pequeno indígena Guarani Kaiowá de Dourados - que terá seu nome preservado neste texto - recebeu um nome de batismo que, para efeitos legais, foi apagado dos registros.

Aliás, sequer o nome de sua mãe constou naquela papelada toda, sendo ali inserido o nome de outra. Tudo começou no dia 2 de fevereiro de 2015, quando a criança nasceu em uma casa do acampamento Ñu Verá, na Aldeia Bororó. Foram sete dias de acolhimento materno até que seu futuro começou a ser traçado longe de casa.

Imagem anexada ao processo mostra reencontro com abraço entre criança indígena e mãe que ficou sem o filho sete dias após o parto (Foto: Reprodução)
Imagem anexada ao processo mostra reencontro com abraço entre criança indígena e mãe que ficou sem o filho sete dias após o parto (Foto: Reprodução)

No dia 9 de fevereiro assistentes sociais da aldeia desconfiaram do bebê carregado pela mulher indígena, ali com então 37 anos. Ela não teria apresentado sinais de gravidez, nem sequer compareceu ao posto de saúde local para exames de pré-natal.

Indagada, a mulher - que também terá a identidade preservada - logo revelou que aquele menino era seu filho. Mas a desconfiança prosseguiu e ela foi levada para um exame informal no posto de saúde, onde a médica do local constatou, equivocadamente, que a indígena não teria passado por um parto recentemente.

Sob pressão - Aí, começaram as divergências. Contra a parede, a mãe mentiu e negou a maternidade biológica. Consta no processo que tramitou judicialmente que ela revelou no posto ter recebido o bebê em sua porta por uma adolescente, que logo fugiu. Em outros depoimentos, a versão persistiu, mas com mudanças cruciais em detalhes.

A situação fez com que logo o pequeno indígena, recém nascido, fosse retirado dos braços da mãe e levado para o Lar Santa Rita, onde foi criado até poucos dias atrás. Daí, foi iniciada a busca pela 'verdadeira mãe'.

Duas possíveis genitoras foram identificadas - sendo que uma delas, chamada Daiane, era quem constava no registro de nascimento -, ambas adolescentes e que estariam morando no Paraguai. Outras duas mulheres, tias dessas jovens e também moradoras da Aldeia Bororó, requereram a guarda da criança, como familiares mais próximos.

Cada uma sustentou sua versão para permanecer com a criança até que, tempos depois, a mulher a qual o bebê foi retirado com apenas sete dias de vida, revelou a verdade: ela tinha se relacionado com um jovem da aldeia e engravidado dele.

Garoto, agora com quase seis anos, adaptado à comunidade e brincando com irmãos e outras crianças (Foto: Lídia Farias/Cimi)
Garoto, agora com quase seis anos, adaptado à comunidade e brincando com irmãos e outras crianças (Foto: Lídia Farias/Cimi)

DNA e burocracia - A verdade, após tantas versões e desencontros, acabou sendo contestada pelas autoridades que mantinham sob custódia do Estado o bebê Guarani Kaiowá. Apenas um teste de DNA seria capaz de comprovar a verdade. E foi aí que ela veio à tona: a última versão apresentada era a real.

Com a maternidade comprovada, as versões das outras mulheres acabaram indo para o ostracismo, assim como o destino - se reais as alegações ali apresentadas - dos dois bebês nasceram de suas respectivas sobrinhas.

Mas para o pequeno indígena Guarni Kaiowá, afastado do peito materno já com sete dias de vida, começa ali uma espiral burocrática em que, apesar dos apelos da mãe, Funai e grupos de apoio da sociedade civil, seguiu longe de sua comunidade e família.

O nome da mãe em seu registro foi trocado, mas sua casa continuava a ser o Lar Santa Rita. Visitas constantes eram realizadas pela mulher, algumas vezes impedidas pela própria Justiça. Começava aí um longo processo para voltar para casa.

Longa batalha - A mudança da mãe no registro não foi o suficiente para assegurar a guarda à sua mãe. Ali, começava uma sequência de entraves e pareceres negativos ao retorno do filho aos braços da mãe, mantendo ele sob tutela do Lar de Crianças.

Dois anos se passaram e em 2017 o pequeno indígena, que já tinha três irmãos - uma menina de 16 anos, outra de 11 e um irmão de oito - ganhou um novo 'companheiro', que nasceu em novembro. Apesar de seus irmãos seguirem com a mãe, ele era mantido por N argumentos longe dela, apresentadas inclusive pelo Ministério Público.

Pequeno Guarani Kaiowá voltou para casa após cinco anos e nove meses (Foto: Lidia Farias/Cimi)
Pequeno Guarani Kaiowá voltou para casa após cinco anos e nove meses (Foto: Lidia Farias/Cimi)

Relatório anexado ao processo acusava a mãe de desleixo com os filhos. Em julho daquele ano, a Funai se manifestou a favor do retorno da criança para a casa da mãe, demonstrando "franca discordância de qualquer busca por família substituta" e contrariedade ao relatório do Lar Santa Rita.

Em julho de 2018, mais uma parecer negativo ao retorno da criança indígena para casa, dessa do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), assinado pelo promotor Luiz Gustavo Camacho Terçariol, que aponta "vulnerabilidade social e econômica" da mãe.

Em maio, um grupo formado pela psicóloga Mariela Bailosa, a assistente social Barbara Nicodemos e a socióloga e mestre em antropologia Silvana Jesus do Nascimento, apresentou outro relatório à Justiça, pedindo pelo retorno da criança à mãe. Elas acompanharam o caso entre setembro de 2017 e abril de 2018.

Laço familiar mantido - O relatório constatou já naquela época que os laços entre mãe e filho estavam mantidos, cobrando também a elaboração por parte do Poder Público a elaboração de um plano de reintegração familiar e cumprimento do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para que a reintegração fosse iniciada.

"Reiteramos neste relatório o que havíamos observado no relatório anterior, diferente do que parece entender o sistema de garantia de Direito o afastamento de [nome da criança omitido] do convívio familiar não significou a ruptura dos laços com sua família de nascimento, ainda que estes laços tenham sido fragilizados", crava.

"A criança já tem três anos e apresenta uma notável fragilidade no desenvolvimento da fala. Inclusive a equipe técnica já chegou a perguntar se o Lar já o levou para algum especialista da área (neurologista, fonoaudiólogo ou psicopedagogo), porém nos foi dito que não há necessidade", destaca outro trecho.

Ainda assim, o juiz Zaloar Murat Martins de Souza em julho de 2018 seguiu as recomendações do MPMS e manteve o recolhimento institucional do pequeno indígena, já que não havia "consonância entre relatórios da Funai e do Lar de Crianças".

Em setembro, o MP voltou a se manifestar pela manutenção do recolhimento da criança, que seguia longe de casa sob a justificativa das condições da mãe - que seguia com a guarda dos demais filhos e já tinha melhorado sua moradia com auxílio da população. Dessa vez, Terçariol apontou não haver laços entre mãe e filho.

Laudo esclarecedor - A criança indígena ficou sem ver a mãe após mais um período, que cessou apenas em agosto de 2019, quando o direito de visita que estava bloqueado foi derrubado em segunda instância por colegiado do TJ (Tribunal de Justiça).

Em paralelo a isso, foi pedido um laudo antropológico independente para analisar a situação. E foi esse documento que deu razão aos relatórios anteriores da Funai e do grupo de apoio que acompanhou a mãe indígena.

"Tendo como base o direito de que sejam consideradas e respeitadas a identidade social e cultural de [nome omitido para manter preservada a criança], e os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta lei e pela Constituição Federal, entendemos que a reintegração familiar do infante deva ocorrer, no seio de sua comunidade, junto aos membros de sua família e da mesma etnia, proporcionando o direito de, em comunidade com os demais membros de seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma e, finalmente, respeitando o que reza o Estatuto da Criança e do Adolescente".

Só diante do laudo antropológico, em 2019, é que os entendimentos da Justiça e do Ministério Público passaram a seguir o caminho do restabelecimento do convívio entre filho e mãe, apesar disso ter sido negado por vários anos.

"Assim, podemos afirmar que a criança [nome da criança] ESTÁ PRONTA PARA SER DEVOLVIDA AO CONVÍVIO FAMILIAR junto à sua mãe, família e comunidade. Por estes elementos elencados durante todo o decorrer deste relatório, temos a convicção de que a criança poderá ser perfeitamente ambientada ao convívio familiar, às atividades cotidianas da família em questão", frisa o documento antropológico.

Burocracia e demora - Apesar de datada do fim de 2019, apenas em abril de 2020 o promotor Terçariol se posicionou sobre tal laudo e deu parecer favorável ao retorno da criança para a Aldeia Bororó. Contudo, esse retorno foi atrasado pela crise de covid-19 e aconteceu apenas no fim do mês de novembro.

Sim, há poucos dias, 16 para ser mais exato, é que o pequeno indígena, agora com cinco anos, e prestes a completar seis em fevereiro, voltou para seu lar. Seu verdadeiro lar. Mas os problemas não pararam por aí.

A Defensoria Pública anexou mais uma reclamação no processo, mostrando suposto descaso no processo de retorno. Mas dessa vez o alvo não foi a mãe, e sim o Lar Santa Rita. Segundo o documento, a criança retornou para a mãe com apenas seis mudas de roupa e sequer seus documentos pessoais entregues.

"Por outro lado, até o momento não foi juntado aos autos nenhum relatório de acompanhamento da reintegração familiar pelos órgãos da rede externa de proteção à criança e adolescente, bem como não foi informado ao juízo competente que a criança já havia retornado definitivamente a comunidade indígena, violando o artigo 14 da Portaria nº 03 de 19 de setembro de 2017", completa.

Por ora, o pequeno menino, retirado dos braços da mãe e envolto em uma enorme confusão alimentada por versões divergentes de sua genitora e de processos burocráticos daqueles que deveriam zelar por ele, parece que poderá ter uma 'vida normal' em família, mesmo que seu nome oficialmente não seja o escolhido pela mãe, e sim aquele definido por um juiz, em um mero despacho.

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