Deserdada ao casar com quilombola, dona Ziláh vira memória viva do quilombo
Aos 89 anos, ela é a única sobrevivente de sua geração e mantém laços com a comunidade
Ela deixou os pais e irmãos para se casar com um quilombola, foi deserdada e, décadas depois, tornou-se matriarca e referência na comunidade remanescente de quilombo Família Cardoso, conhecida como Negros do Largo da Baía, na área rural de Nioaque, a 184 km de Campo Grande. Há cerca de 70 anos, dona Ziláh Marcondes, hoje com 89 anos, frequenta o local onde vivem parentes do marido já falecido. Embora sempre tenha morado em área vizinha, sua vida seguiu integrada à comunidade.
RESUMO
Nossa ferramenta de IA resume a notícia para você!
Dona Ziláh Marcondes, de 89 anos, tornou-se uma figura emblemática do quilombo Família Cardoso, em Nioaque, Mato Grosso do Sul. Após se casar com Vital Cardoso, um quilombola, ela foi deserdada pela família de fazendeiros descendentes de italianos. Apesar das dificuldades, Ziláh dedicou-se à lavoura para sustentar os oito filhos, após a morte precoce do marido. Hoje, ela é a matriarca de uma extensa família, com 24 netos, 23 bisnetos e quatro tataranetos, mantendo viva a memória e as tradições da comunidade quilombola. Sua rotina simples e sua resistência continuam inspirando as novas gerações.
O quilombo Família Cardoso teve origem a partir de dois núcleos familiares, Cardoso e Romano, que se uniram ao longo do tempo por laços de parentesco e convivência. Entre os integrantes mais antigos deste grupo, dona Ziláh é hoje a única representante viva da sua faixa etária.
Filha de fazendeiros descendentes de italianos, cresceu em uma família com boas condições financeiras e começou a trabalhar cedo na roça, ao lado dos pais. Aos 20 anos, conheceu Vital Cardoso na fazenda da família, em Nioaque, onde ele trabalhava furando poços. A decisão de deixar a casa dos pais para viver um casamento inter-racial marcou sua trajetória. À época, a união significou o rompimento com a família de origem e a perda da herança. “Fui embora com ele de cavalo”, afirma Dona Ziláh.
Vital Cardoso era filho de Manoel Juvêncio Cardoso e Maria das Dores Cardoso, um dos casais fundadores do quilombo. Mesmo sem residir dentro do território, dona Ziláh manteve laços constantes com a comunidade, participando das atividades, das festas e da convivência com os parentes do marido. “Hoje é gratificante ver ela como uma das representantes quilombolas”, afirma a neta Ana Paula Cardoso.
Dona Ziláh teve oito filhos, três deles já falecidos. A família se espalhou pelo entorno e hoje são 24 netos, 23 bisnetos e quatro tataranetos, a maioria vivendo próxima, quase “porta a porta”, ressalta.
Lavoura - A matriarca afirma que, após o casamento, foi trabalhar na roça para sustentar a família, período em que morou de favor em terras de patrões até receber como doação a chácara onde vive até hoje, ao lado do quilombo. “Trabalhei na roça desde pequena com meus pais e depois para dar de comer aos meus filhos”, relata. A pequena chácara hoje foi dividida em lotes e abriga toda a família.
O trabalho pesado na lavoura marcou sua juventude. Produzindo farinha e polvilho, fazia malabarismos para conciliar a roça com os cuidados dos filhos. “Os pequenos ficavam tudo na rede e eu saía para a roça com os maiores. Ou fazia um buraco no chão e botava eles no meio,” conta.
“Plantava milho, plantava rama, arroz. Hoje, a minha vida mudou. Graças a Deus, eu estou bem. Estou na minha casa e moro só com um filho”, diz.

Despedida - A fase mais difícil veio com a morte do marido. Vital ficou doente, com tuberculose, e morreu em casa, aos 53 anos. “Ele morreu nas minhas mãos e nas mãos da minha filha Aparecida”, lembra. A partir daí, criou sozinha os oito filhos.
As condições eram precárias. A família morava em casa de barro, que se desfazia nos dias de chuva. “Quando chovia, escorria barro da parede. As crianças choravam de frio, pedindo comida”, lamenta.
Rotina - Mesmo com o passar do tempo, dona Ziláh mantém o ritmo que a acompanha há décadas. Acorda às 4h da manhã, acende o fogão de lenha e prepara o café na chaleira. À noite, preserva o ritual simples que nunca mudou. “O negócio dela é tomar um leitinho de noite, ela é toda natural. Um bolinho, um pãozinho com leite e vai dormir”, relata neta Ana Paula ao ressaltar que os jovens comem comidas pesadas.
Da infância ela guarda boas lembranças e compara o passado com o comportamento das crianças atuais. “Naquele tempo, a gente brincava. Hoje as crianças só querem saber de celular”, comenta.
Hoje, aposentada, viúva e com os filhos criados, ela recebe conselhos da família para desacelerar: “Ela trabalha 24 horas. A gente fala ‘para, vó’. Ela não para,” resume Ana Paula. “Eu vou parar”, rebate dona Ziláh.
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News e siga nossas redes sociais.





