Mato Grosso do Sul divulgado em prosa, verso e preconceito no século XIX
O homem que inventou o Mato Grosso do Sul
Primeiro foi o espanhol Alvar Nuñez Cabeza de Vaca a visitar as águas pantanosas e as terras do Mato Grosso do Sul. Em seguida, na região do que hoje é Naviraí, outros espanhóis tentaram fixar residência. Expulsos por indígenas, foram explorar e viver na região de Aquidauana e Miranda.
Um magote de bandidos maltrapilhos, que receberam o pomposo nome de "bandeirantes", descendentes de portugueses miscigenados com indígenas paulistas os matou e expulsou dessa região.
Cem anos se passaram. Os nossos campos estavam tomados por vacadas e cavaladas e alguns bolsões de indígenas. Pequenas comunidades começaram a se formar. Um povoado em Paranaíba, outro em Camapuã, alguns moradores em Nioaque, Rio Brilhante... Um forte-presídio em Miranda e uma "próspera" comunidade em Albuquerque-Corumbá. Eclode a guerra contra a nação paraguaia. Um jovem que atende pelo nome de Alfredo, neto e filho de pintores franceses de paisagens, refinado, com absolutamente nenhuma aptidão para a carreira militar, vestiu a farda e atravessou a nossa região. Era uma época em que havia mais mitos do que o conhecimento de nossa geografia. As águas e as doenças ameaçavam tragar os homens sob os efeitos devastadores do clima.
Durante a campanha militar de Laguna, Alfredo escreveu um "Relatório Geral", uma espécie de diário de viagem no qual registrou os acontecimentos da guerra e captou momentos que oscilam entre a agonia do sofrimento dos militares e o êxtase perante a beleza de nossas paisagens.
Era jovem, conheceu uma índia na região de Aquidauana, Antônia, cujas apaixonadas lembranças estão registradas nas "Memorias" (1948) como também no conto "Ierecê a Guaná" (2000).
Seus escritos de vulto, porém, só ganhariam fama e o projetariam no cenário nacional, em 1868, quando publica "A Retirada da Laguna". Alfredo, passa a ser conhecido como Alfredo De Escragnolle Taunay. Ele tinha um projeto para pensar o
Brasil a partir do interior mais "distante" e "selvagem". "Pouco habitado, insalubre e com uma gente indolente e sem cultura".
Ele carrega os preconceitos típicos de sua época para visualizar os poucos moradores do Mato Grosso do Sul de então. Transforma derrotados em heróis, enaltecendo uma vitória guerreira que todos sabiam de seu desfecho desde o início das hostilidades.
Mas foi Alfredo o primeiro brasileiro a propagandear o Mato Grosso do Sul, levando a nossa existência, quase desconhecida, para a maioria dos brasileiros.
A vida antes da eletricidade
Com o advento da eletricidade perdemos, em parte, o significado da escuridão. Chegamos a dizer "cai a noite", quando, em realidade, ela se levanta: começa nos vales e vai subindo até os picos das montanhas.
Antes que as lâmpadas espantassem as trevas em nossas casas e cidades, tudo era muito diferente. As pessoas "eram cegas na metade de suas existências". Mas não nos livramos totalmente das fantasias com monstros e criaturas fabulosas associadas à noite. Ainda pululam os licântropos - os homens que viravam lobos. Os íncubos, só trocaram o nome. Na Idade Média , acreditavam que os íncubos visitavam as mulheres quando elas dormiam. Seriam anjos caídos por causa de seu apetite erótico desaforado. Seus equivalentes femininos eram os súcubos. Os espíritos tomavam a forma de bruxas, haviam demônios noturnos, colunas de homens sem cabeça cavalgando e lobos pululando pela escuridão.
A noite provocava loucura nas mulheres. Febres e resfriados eram só algumas das enfermidades causadas pelos "vapores noturnos" que entravam pelos poros da pele. Descreviam a noite como um território repleto de perigos naturais e sobrenaturais. Estradas, pontes e cemitérios eram lugares a serem evitados. A única forma de combater esses medos era usar a iluminação artificial. E assim o fizeram. Desde os artistas rupestres do Paleolítico, passando por sumérios, egípcios gregos e romanos. Mas a violência sempre se fez presente na noite. Os ladrões tomavam conta das estradas, as cidades não ofereciam nenhuma segurança. As portas e janelas das casas eram de ferro ou continham partes desse forte metal. As casas pareciam mais uma prisão do que a habitação de pessoas
livres, muito mais que atualmente. Aliás, portas e janelas eram as maiores despesas e preocupação de uma casa em construção.
Multidões de jovens saiam de suas casas e iam às ruas buscando alguma diversão ou a quem agredir. Do escândalo, muitas vezes, passavam ao homicídio. A paixão pelo vinho explicava os exageros, cada jovem bebia, em média, 178 litros por ano. Brigas diárias na frente das tavernas. Se a estes fatos somamos a miséria, uma sexualidade masculina exacerbada devido à tardia idade com que se casavam com meninas de pouca idade além do costume de levar armas - teremos uma das fotografias da noite até o advento da lâmpada.
Os bons hábitos da noite
Mas a vida noturna não era unicamente medo e violência. Ao contrário do que imaginamos, as pessoas não iam para a cama tão logo anoitecia e nela permaneciam até o amanhecer. Na realidade, acontecia um descanso segmentado. A primeira parte começava com o pôr do sol e durava várias horas. Após algum tempo, acordavam por uma ou duas horas e voltavam a dormir. O tempo entre os dois sonos era destinado às orações, à conversação, ao sexo e aos trabalhos caseiros.
Outras atividades também aconteciam à noite. Mercadores, aprendizes, artesãos e o pessoal dos serviços domésticos começavam a trabalhar às seis horas da manhã, independentemente de quando saísse o sol - em muitos meses o sol só aparece às nove horas. Somente em finais de 1600 os trabalhadores passaram a acompanhar o surgimento da luz do sol. Mas também existiam atividades que só podiam ser exercidas com a escuridão. Fabricar cerveja era um ofício que só podia começar com o anoitecer. Os padeiros iniciavam os trabalhos às 11h30. Muitos ofícios religiosos se davam na madrugada.
No ano de 1700, a vida foi invadindo a noite. As estradas começaram a se ver livre de malfeitores e os mercadores passaram a viajar pela noite para abastecer as cidades na madrugada. Mas as ruas das cidades continuaram a ser perigosas e violentas. Até hoje.
A distopia brasileira
Em uma obscura cidade hipotética, gangues de adolescentes dedicam as noites a roubar, violentar e matar. O jovem líder é capturado pela polícia. Submetido a uma agressiva terapia psíquica para que a violência o perturbe, simula haver-se curado e sai livre, mas continua selvagem. O valor distópico dessa narrativa está embasado no livre-arbítrio: é melhor ser malvado por decisão própria que bom por lavagem cerebral.
Em outra narrativa, depois de uma guerra, vivendo em um estado fascista que controla a população mediante a repressão e redes de câmeras por todos os lados, surge um homem mascarado que empreende uma série de atentados, para levar a cabo sua vingança particular contra o regime. Neste caso, o valor distópico está na luta do indivíduo frente ao Estado totalitário que o sufoca. O herói da trama é um anarquista sem piedade e frio na consecução de seus atos violentos.
As duas narrativas são sobejamente conhecidas. A primeira está no filme "Laranja Mecânica" e a segunda no "V de Vingança".
O jovem ainda tem utopia?
A questão posta é se existe uma massa de jovens brasileiros, talvez sul-mato-grossenses, conduzidos por um ideário distópico? Vimos algo semelhante nos filmes das manifestações de um ano atrás?
A distopia é o revés da utopia. Um lugar ruim para se viver, devido a uma tirania ou com o meio ambiente degradado. Estamos construindo uma parcela de nossos jovens para serem conduzidos a seus extremos mais negativos? Ou estão surgindo tendências e fenômenos no presente que podem nos conduzir a um mundo brutal e destruído?
Talvez seja os choques dos extremos. O salto conquistado de bem estar social se confrontando com muitos outros substratos da sociedade. Os próximos anos responderão. Mas é difícil duvidar, os valores distópicos estão germinando no Brasil e no Mato Grosso do Sul.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.