ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  26    CAMPO GRANDE 31º

Arquitetura

Há 14 anos, Antônio divide casa decorada pela esposa em 1985 com a saudade

Entre as memórias do passado de uma vida dividida entre o campo e a cidade, a ausência Eugênia é a única que ainda pesa no peito de Antônio.

Kimberly Teodoro | 03/02/2019 08:06
Antônio divide com a saudade a casa escolhida ao lado da esposa em 1984 (Foto: Marina Pacheco)
Antônio divide com a saudade a casa escolhida ao lado da esposa em 1984 (Foto: Marina Pacheco)

Bem na esquina, o portão de madeira emoldurado por tijolos expostos ao redor do muro baixo atrai olhares e conquista a simpatia de quem passa pela calçada. Antigo, o lar escolhido por Antônio e pela esposa Eugênia, há 34 anos, traduz o espírito do fazendeiro: homem do campo, humilde, e metódico, em perfeita sintonia com a simetria da casa.

Eugênia partiu em 2005, mas continua presente ao redor de Antônio, em cada detalhe da casa que é um pedacinho das antigas sedes de fazenda, muito comuns pelo interior do Estado. Companheira ao longo de 44 anos de casamento, a decoração foi toda escolhida por Eugênia e é preservada até hoje, preenchendo com a saudade os espaços que ficaram vazios depois do inesperado “até breve”, dito por telefone.

Para Antônio, a esposa acabou vencida pelo cansaço, depois de 5 anos presa a hemodiálise, foi o desgosto o responsável por fazer o coração parar de bater no meio da sessão. “Ela odiava aquela máquina, os médicos disseram que o tratamento ia prolongar a vida dela, mas era muito difícil para uma mulher forte como ela, que sempre foi saudável, se ver presa a um aparelho”, diz.

Álbum antigo, Antônio mostra com carinho as lembranças do casamento que durou 44 anos (Foto: Marina Pacheco)
Álbum antigo, Antônio mostra com carinho as lembranças do casamento que durou 44 anos (Foto: Marina Pacheco)
Antônio conheceu Eugênia nos tradicionais bailes feitos na fazenda, em que todos os vizinhos eram convidados (Foto: Marina Pacheco)
Antônio conheceu Eugênia nos tradicionais bailes feitos na fazenda, em que todos os vizinhos eram convidados (Foto: Marina Pacheco)

Pecuarista, Antônio Juliano Maciel de Assis, hoje com 89 anos, passou a vida entre a fazenda na região da Nhecolândia, no Pantanal, e a cidade. Primeiro em Corumbá onde nasceu e depois em Campo Grande, ele se orgulha de ser um homem “da lida”, que aprendeu a ser fazendeiro sendo peão e “fazendo de tudo um pouco” na propriedade da família, que não aliviava o serviço para os funcionários, independente do parentesco, ele impunha respeito dobrado como pai e como patrão.

“Durante 60 anos, morei na mesma fazenda lá no meio do Pantanal”, diz Antônio com orgulho. Ele chegou a vir para a cidade, estudou como interno no Colégio Dom Bosco até o 2º ano do magistério. Da turma dele, saíram médicos, advogados e políticos importantes e ele até tentou “engajar” no Exército, onde serviu por tempo o suficiente para virar cabo e passar no curso de sargento, mas não teve jeito, acabou largando tudo, sempre foi pela criação de gado que o coração bateu mais forte. “É só isso que eu sei fazer, não aprendi a fazer mais nada”, diz com a certeza de quem passou a vida trabalhando com o que ama.

Foi nessa época, depois de dar baixa no Exército que Antônio conheceu Eugênia, durante um dos tradicionais bailes sediados na propriedade do pai, em que toda a vizinhança era convidada. Foram 2 anos de noivado até o casamento, em que ele acordava de madrugada e ia a cavalo até fazenda vizinha, onde só chegava na hora do almoço. “Eu ia sempre aos fins de semana, terminava meu trabalho, montava o cavalo e ia até lá o mais rápido que dava, porque era longe. Passava dois dias e voltava para casa, tudo com o consentimento do pai dela, ela tinha 17 irmãos e sempre alguém para ficar de olho”, relembra.

Vaidoso, Antônio posa com elegância para foto e só depois de arrumar a camisa e colocar o chapéu (Foto: Marina Pacheco)
Vaidoso, Antônio posa com elegância para foto e só depois de arrumar a camisa e colocar o chapéu (Foto: Marina Pacheco)

Entre os 8 irmãos, apenas Antônio e mais 2 continuaram tocando a fazenda depois da morte do pai. Enquanto os outros pegaram a parte da herança e seguiram rumo diferente, ele usou a experiência de quem cresceu correndo pelo campo de pés no chão, montando a cavalo, ordenhando vacas e tocando gado para prosperar e aumentar a renda da propriedade, que tinha 17 “mudas”, áreas de pasto onde o gado é criado.

“Por lá, quando chovia o acesso ficava bloqueado e nem carro passava, chegamos a ficar 2 anos assim. Íamos com a estrada seca e para voltar, só de avião ou depois que a época das cheias passassem”, conta Antônio, que sempre gostou mais dos bichos e da fazendo do que da cidade.

Eugênia tinha o mesmo amor pela vida no campo que Antônio e nunca reclamou do tempo que passavam isolados no Pantanal, um cuidava do outro. Enquanto ele ia para a lida, quase de madrugada e voltava só pelo meio da tarde, ela cuidava da casa e passava o tempo livre fazendo crochê ou tricô, tecendo casacos que ele guarda até hoje para se proteger do frio e se sentir um pouquinho mais perto dela.

A casa amarela de portões de madeira foi comprada em 1985 e paga à vista, quando o casal decidiu que morar na cidade seria mais cômodo, tanto pela facilidade em chegar até a fazenda, como pela estrutura que a criação dos dois filhos, um homem e uma mulher, demandaram. “Morávamos na fazenda, mas tínhamos o apartamento em Corumbá, mas de lá para chegar até até a fazenda era necessário subir o rio de barco e viajar pela estrada de terra mais uns quantos quilômetros. De Campo Grande, a estrada tinha melhores condições e para chegar era mais rápido. Foi então que decidimos procurar casas aqui, olhamos 3 ou 4 lugares até acharmos uma que os dois gostassem”, conta

Traços das construções coloniais ainda dão charme à casa (Foto: Marina Pacheco)
Traços das construções coloniais ainda dão charme à casa (Foto: Marina Pacheco)
Maçanetas ainda são as originais, com girassóis cravados em alto relevo no metal (Foto: Kimberly Teodoro)
Maçanetas ainda são as originais, com girassóis cravados em alto relevo no metal (Foto: Kimberly Teodoro)

Além da boa localização, o novo lar na cidade preservava o aconchego do campo, com piso feito com tábuas de madeira que nunca precisaram ser trocadas e só denunciam a idade pelo verniz gasto pela sola dos sapatos. As janelas em arco, estreitas e compridas, posicionadas uma ao lado da outra, enchem os cômodos com a luz do sol no fim da tarde. Ainda assim, o charme está mesmo nas portas de madeira maciça com arabescos e maçanetas de metal com girassóis entalhados, que são praticamente uma viagem no tempo.

“Tudo aqui dentro, a Eugênia escolheu, desde os móveis até os enfeites, ela adorava enfeitar a casa”, relembra. Quando ela adoeceu, as viagens e o tempo de permanência fora da cidade diminuíram, Antônio mandou instalar um telefone na fazenda para se comunicar todos os dias com a esposa por telefone, os dias no campo, marcados por companheirismo e alegria, acabaram virando visitas a trabalho, que duravam apenas o tempo necessário para a administração da propriedade.

O sofá é a peça mais antiga da casa, que resistiu da mudança de Corumbá até Campo Grande (Foto: Marina Pacheco)
O sofá é a peça mais antiga da casa, que resistiu da mudança de Corumbá até Campo Grande (Foto: Marina Pacheco)
Cada peça usada na decoração foi escolhida por Eugênia (Foto: Marina Pacheco)
Cada peça usada na decoração foi escolhida por Eugênia (Foto: Marina Pacheco)

“Eu só viajava quando ela estava bem e mesmo assim, conversávamos todas as noites. Se ela estivesse passando mal, eu pegava o avião e voltava. Os 5 anos em que ela fez hemodiálise foram assim. Na última vez, eu fui porque ela estava bem. Conversamos na noite anterior, eu me despedi prometendo voltar logo, mas mal eu tinha chego lá eles me ligaram com a notícia de que o coração dela tinha parado”, diz.

De madeira maciça, os móveis estão na casa há tanto tempo quanto Antônio (Foto: Marina Pacheco)
De madeira maciça, os móveis estão na casa há tanto tempo quanto Antônio (Foto: Marina Pacheco)

Com a partida da esposa, Antônio resolveu vender a propriedade no Pantanal e comprar um lugar menor nos arredores de São Gabriel. A decisão veio depois da solidão e do isolamento que passaram a rondar a sede da fazenda onde o casal foi feliz e criou os filhos. Acostumado com a independência, Antônio ainda dirige e monta a cavalo, mesmo com a idade, mas resolveu vender também o que restou das terras, para aproveitar a velhice com tranquilidade na casa que ele afirma ser a última morada que vai ter nessa vida.

Antes de me despedir, pergunto a Antônio se ele não vai sentir falta do campo e do estilo de vida que conhece desde que nasceu, a resposta negativa vem com confiança, acompanhada pouco depois de palavras ditas a meia voz, em um tom de quem não tem certeza se fala consigo mesmo ou pronuncia a ausência em voz alta, “Falta eu sinto da minha esposa, da fazenda… não”.

Curta o Lado B no Facebook e no Instagram.

Nos siga no Google Notícias