Autor censurado em MS fala sobre preservar ‘avesso’ e papel da obra
Com projeto literário para formar leitores, Jeferson expõe que censura é coletiva e não individual
Desde que a 8ª Flib (Feira Literária de Bonito) começou, Jeferson Tenório é um dos convidados nacionais que está no radar do público. O escritor, que teve o livro recolhido em 349 escolas estaduais a mando do Governo do Estado, tem assinado inúmeros autógrafos neste mesmo romance: ‘O Avesso da Pele’.
Pela segunda vez em Mato Grosso do Sul, Jeferson encontrou em Bonito a receptividade de leitores antigos que tiveram contato com seu trabalho em contexto diferente ao da censura. Além deles, o escritor também tem sido abordado por leitores que foram atraídos pela polêmica que repercutiu nacionalmente em março deste ano.
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‘O Avesso da Pele’, lançado em 2020 pela Companhia de Letras, sofreu censura em Mato Grosso do Sul e outros dois estados brasileiros. No Estado, a justificativa da SED (Secretaria de Educação) para o recolhimento do material foi que o livro era ‘impróprio’ para a faixa-etária da maioria dos estudantes. Depois, o Governo do Estado voltou atrás e nesse movimento o romance ganhou novamente lugar nas bibliotecas das escolas estaduais.
Em entrevista ao Lado B, o doutorando em teoria literária pela PUC-RS fala sobre ‘O Avesso da Pele’, o contato com os leitores e também a censura que tem impacto coletivo na literatura. Para começar, Jeferson comenta que durante a passagem na Flib tem sido recepcionado por muitos alunos e professores.
“A maioria são leitores que têm clube de leituras e alguns falaram da polêmica, da recolha dos livros. Outros são professores e alunos, mas estou sendo muito bem recebido assim as pessoas têm falado das experiências com a leitura e as outras”, fala.
De março até agora, Jeferson concedeu várias entrevistas e o recolhimento da obra tem sido tema recorrente nas conversas. Questionado se sente incômodo em falar sobre a polêmica repetidas vezes, ele afirma que não.

“Eu acho que é importante falar sempre, né? Porque não é algo que a gente pode normalizar e nem pode naturalizar, então é importante falar sempre que tiver a oportunidade de falar. Talvez o incômodo tenha a ver com o tipo de pergunta que às vezes é feita”, diz.
Sobre isso, ele explica que muitos jornalistas perguntam como ele se sente e isso é algo que individualiza algo que tem impacto coletivo e não particular.
“Quando a pergunta parte do: ‘O que você sentiu?’ Eu acho que individualiza uma coisa que ela é coletiva. É muito mais interessante o que eu penso sobre a questão, porque o sentimento tem a ver com uma certa exploração sentimental. Sentir individualiza uma coisa que não é individual. Essa é uma violência que está atacando uma sociedade inteira e não tem a ver só com eu Jeferson”, destaca.
No período que ‘O Avesso da Pele’ esteve entre as principais notícias do momento, o autor expõe que recebeu contato de muitas pessoas que vieram movidas pela curiosidade. Essa procura, segundo ele, fez com que o romance chegasse em lugares que ainda não tinha chegado.
“Chegou muita gente motivada pela história da censura [...] curiosa para saber o que que tinha nesse livro para estarem falando. A censura acabou ampliando o número de eleitores e ampliou a chegada do livro em mais lugares. [...] Essa questão acontece quando a censura acontece e não é só com um livro. Qualquer coisa que é censurada, vista como proibida acaba atiçando mais as pessoas e aí tem o efeito contrário”, comenta.
O fato de ter desagradado um grupo de pessoas e uma categoria política com o livro, conforme o autor, não é algo que ele procura fazer através de seu trabalho. Através de O Beijo na Parede (2013), Estela sem Deus (2018) e O Avesso da Pele (2020), Jeferson relata que se propôs a fazer o que é um dos papeis da literatura.
“O intuito é contestar uma sociedade injusta e contestar uma sociedade desigual e racista. Aí se isso incomoda um determinado grupo de pessoas, eu acho que eu estou no caminho certo. Mas, o intuito não é escolher um grupo e fazer para ser desagradável. A literatura sempre contesta alguma coisa. A literatura e arte em geral sempre vão contestar a sociedade”, afirma.
Professor por 18 anos da rede pública, Jeferson exerce exclusivamente a profissão de escritor. Até 2021, ele estava na sala de aula, mas hoje quando visita as escolas é outro papel. Por meio da literatura, o escritor comenta que consegue seguir ensinando de outra forma.
“O modo como os alunos se apropriam do conhecimento e das coisas que digo é por outra via, a via da literatura e tem sido muito legal. Eu me sinto mais livre também para para tratar de alguns temas e os professores me agradecem”, declara.
Nesse contato com o público, principalmente os jovens, o escritor conta que é uma realização ouvir que muitos conseguiram ler um livro inteiro pela primeira vez através de seus escritos. Esse é inclusive um dos objetivos do escritor que encara as três obras como um projeto literário para formar leitores.
“Isso tem a ver com uma linguagem mais fluida com poucas palavras difíceis. Procuro também fazer sempre uma narrativa que seja mais ou menos linear para que esse leitor consiga entender a história de verdade. Eu escrevi um livro que eu gostaria de ter lido na adolescência”, complementa.
Preservar o ‘avesso’ - Em certo ponto da narrativa do último livro, o personagem principal (Pedro) recorda uma conversa que teve na infância com o pai (Henrique).
“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são os afetos que nos mantêm vivos”
Preservar o avesso é algo que sensibiliza leitores para além da questão racial. Particularmente, o autor conta que encontrou na escrita um jeito de preservar o próprio avesso.
“Essa preservação do avesso tem a ver com o que as pessoas não têm acesso, é aquilo que você consegue preservar que é único e singular. Os modos que eu encontrei para preservar os meus avessos foi a literatura e arte. Foi escrevendo, me tornando leitor e desse modo, principalmente, é não textualizar os ataques que são feitos”, frisa.
Agora, Jeferson trabalha em um novo romance que deverá ser lançado até o final deste ano. Com um sorriso final, o escritor diz que ainda não pode dar detalhes sobre a obra.
Flib - No último dia da feira literária, no sábado (06), Jeferson Tenório participou da ‘Conversa com Escritor: As fronteiras da literatura e as travessias do texto literário’ com mediação de Maria Adélia Menegazzo. Durante a conversa, o escritor falou que o tempo como professor foi essencial para a formação como escritor, sendo essa uma das ‘fronteiras’ que precisou atravessar.
Além de Jeferson, a 8ª edição da Flib teve a participação de outros escritores nacionais, sendo eles Kaká Werá, Jô Freitas, Geovani Martins, Socorro Acioli, Janaína Tokitaka.
Neste ano, a edição trouxe como tema ‘Literatura: Fronteiras e Travessias” com a proposta de explorar as múltiplas fronteiras da literatura – culturais, políticas, geográficas e de gênero.
Homenagens especiais - Nesta edição, a feira homenageou três grandes escritores cujas obras captam e transcendem as fronteiras regionais e culturais como:
Hélio Serejo, de Nioaque – Suas narrativas que refletem a cultura regional e as fronteiras de tempos e espaços, através de contos e causos que preservam memórias e histórias da região.
Graciliano Ramos, com sua obra “Vidas Secas” -, exemplifica os deslocamentos e as travessias dos sujeitos nas diversas regiões do Brasil.
Aglay Trindade Nantes, de Aquidauana, será homenageada por “Morro Azul – Estórias Pantaneiras”, que retrata as histórias e tradições do Pantanal.
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