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Comportamento

A força de uma mãe... e sobre o tamanho da dor ao perdê-la

Andrea Bruneto | 22/06/2014 07:42
A força de uma mãe... e sobre o tamanho da dor ao perdê-la

Uma mulher ficou em coma dezoito anos e morreu domingo passado. Sem aparelhos, respirou normalmente nesse período, mas não abria os olhos e nem emitia um som. E assim seguiu, “dormindo”, viva, por todo esse tempo. Nos três primeiros anos, na casa de uma filha. Nos quinze seguintes, na casa de outra.

Essa filha, que a cuidou por uma década e meia, não aceitava que a mãe se fosse, cuidava-a tão bem, conversava com ela, pressupondo que ela escutava. Apostava em sua recuperação. Há dois meses seu jovem filho sofreu um acidente grave, precisou de transfusões, mas mesmo assim não reagia. Os médicos não tinham mais o que fazer e, diante dessa mãe, “desenganaram” seu filho. Mas a mãe - que como filha já cuidava de sua mãe em coma – não se enganou, respondeu com uma fé enorme na recuperação, que seu coração de mãe sabia que seu filho iria sobreviver. E sobreviveu. Acabei de ver uma foto dele, enviada pelo whatsapp: saiu da UTI, está no quarto, digitando no computador e sorrindo para a câmera.

Essa mulher de desejo decidido, inquebrantável, chamou os irmãos e disse: agora não cuidarei mais da mamãe, vou cuidar de meu filho. E em alguns dias, enquanto os irmãos debatiam como fazer a partir de então, a mãe em coma passa mal, é levada ao hospital, tem um choro convulsivo, mesmo em coma, e morre.

Cada um pode entender isso pela sua crença, pela forma como enxerga o mundo – como escreveu José Saramago: o mundo são os olhos que temos. Por um viés religioso, pela fé em Deus, ou científico, justificando o que é o cérebro e suas funções. Eu, de minha parte, só farei duas considerações.

A primeira: acho que foi fundamental o desejo dessa filha para que essa mulher em coma vivesse por dezoito anos. O ser humano vem ao mundo fruto de um desejo, seu nome reflete um desejo, e também pode morrer quando nenhum desejo mais o anima, seja seu ou de outrem. Sem expectativas, esperanças, próprias e dos próximos, o ser humano fenece, não tem mais lugar algum.

Ninguém é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo, disse o poeta John Donne. E direi isso não pela teoria sobre o sujeito, que embasa minha clínica, e sim com os poetas. Continuo com Donne: “todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra.... também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”Enfim, ninguém é uma ilha, nem mesmo uma pessoa em coma. Também ela é uma partícula animada pelo desejo, vontade, votos, daqueles que a rodeiam.

Mudando de poeta, a mineira Adélia Prado, em “As mortes sucessivas” escreve sobre uma jovem que perde a mãe, no momento em que os seios crescem, ou seja, na adolescência, fica nua com a morte da mãe: cruzando os braços sobre eles, chorava. E foi se consolando lentamente.

A segunda consideração: Não há tecido que consiga cobrir a pele nua da orfandade de uma mãe.

Escrevo este texto, com todo meu sentimento, para duas amigas, Rainer e Márcia, que perderam suas mães neste mês, porque estão um tanto nuas agora, perderam um pedaço de seu continente. Agora, creio, os sinos dobram por elas.

*Andrea Bruneto é psicanalista, adora ir ao cinema, ler e viajar.

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