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Comportamento

Acostumado a reclamar da vida, conheci a importância de quem lê algo pela 1ª vez

Thailla Torres | 07/06/2017 07:51
O toque no papel e o manuseio do lápis, um direito de todos e um sonho de muitos. (Foto: Luciano Justiniano)
O toque no papel e o manuseio do lápis, um direito de todos e um sonho de muitos. (Foto: Luciano Justiniano)

Hoje o Voz da Experiência conta uma história de perseverança e cidadania a 207 km de Campo Grande. Aos 33 anos, Anderson Benites Carneiro, é jornalista e diretor executivo voluntário em projetos sociais de Miranda, junto com outros profissionais, que acompanham o Barco das Letras, iniciativa que ensina ribeirinhos a ler e escrever na região.

Ele, acostumado com o conforto e a identificação com as palavras, no último fim de semana se deparou com uma cena emocionante. Ele viu que o ato de escrever a palavra bola tem um significado gigante na vida quem nunca conseguiu soletrar nem sequer o próprio nome. E foi ali, na presença dos ribeirinhos que Anderson se reconectou com as coisas mais simples da vida.

Ao centro, dona Nilza, que celebra emocionada, porque precisava muito, aprender a fazer uma continha, escrever o nome... (Foto: Luciano Justiniano)
Ao centro, dona Nilza, que celebra emocionada, porque precisava muito, aprender a fazer uma continha, escrever o nome... (Foto: Luciano Justiniano)

A dona Nilza Bandeira é pescadora de família conhecida em toda região de Miranda, município do Pantanal de Mato Grosso do Sul. Tradicionais pescadores do Rio Miranda, a família da dona Nilza conhece as manhas dos rios do Pantanal. E vai tocando a vida ali conforme as cheias e as “baixas” das águas dos rios da bacia do Paraguai.

E nessas idas e vindas do rio e da vida, a dona Nilza teve que deixar muita coisa para depois. Ir à escola foi uma delas. A dona Nilza não sabe ler. E não saber ler é muito difícil nos dias de hoje. Você consegue imaginar como é? A dona Nilza tenta explicar: “É como se a gente estivesse cego no mundo”, descreve.

Conversamos com a dona Nilza numa sala da sede da Colônia de Pescadores Z-5, na fria noite da sexta-feira, 02 de junho. Enquanto a ouço contar sua história, no espaço ao lado estão seus amigos, familiares, conhecidos. Todos pescadores artesanais que tiram dos rios do Pantanal o sustento de suas famílias ribeirinhas. Em comum, eles têm a mesma “cegueira” da dona Nilza. São analfabetos. Uns escrevem, conhecem o “a, e, i, o u”. Outros, nem isso.

A dona Nilza está feliz porque esta história de “cegueira” está mudando. Dona Nilza e seus colegas pescadores estão entrando num barco novo, diferente dos que em que estão acostumados. Estamos reunidos nesta sexta à noite para o Barco de Letras, um projeto que pretende ensinar os pescadores artesanais mirandenses a ler e a escrever.

Com a frase de Paulo Freire, a professora busca inspiração para o desafio de ensinar pescadores ribeirinhos. (Foto: Luciano Justiniano)
Com a frase de Paulo Freire, a professora busca inspiração para o desafio de ensinar pescadores ribeirinhos. (Foto: Luciano Justiniano)

A iniciativa nasceu da demanda apresentada pelos próprios pescadores que enfrentam problemas no dia-a-dia por não saberem ler nem escrever. Na Colônia, local mantido pela associação destes profissionais, eles se se encontram e, entre as atividades diárias, entre uma venda de pescado e outra, trocam lamentos das agruras de não dominarem o alfabeto: é difícil para negociar o pescado; dificuldade para preencher documentos da rotina da pesca; é difícil, até, para saber usar o celular e tirar aquela foto, daquele peixão que o pessoal só vai acreditar que não é “história de pescador” se tiver fotografado!

“A gente quer ler uma receita de remédio, você não pode, você quer fazer uma continha de um peixe, você não pode, você quer ler alguma coisa, uma placa, um nome de uma rua que está escrito, você não lê. A gente vê um celular legal que a gente quer tirar uma foto, fazer um vídeo... não sabe...” enumera a dona Nilza.

Por isso, para eles, o projeto é tão importante. A ação é coordenada pela Janete Correa, ribeirinha que, diferente da maioria, conseguiu se formar nos bancos acadêmicos. É historiadora e voluntária para alfabetizar as pessoas de sua comunidade. “Os ribeirinhos são muito carentes na área da educação”, afirma Janete.

Por isso o apoio que o Barco de Letras recebe é tão celebrado. O projeto é realizado com mentoria do Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural (Ipedi) e tem patrocínio da organização Brazil Foundation que viabilizou o apoio financeiro que vem do exterior, de jovens moradores do bairro nova iorquino de Bonxville. “Um pessoal de tão longe estar se importando ‘com nós’ que somos apenas ‘uns pescador’ ribeirinho fico muito agradecida”, diz a dona Nilza.

Parte dos alunos, na mobilização que vai levar o projeto também para distrito longe da área urbana  da cidade. (Foto: Luciano Justiniano)
Parte dos alunos, na mobilização que vai levar o projeto também para distrito longe da área urbana da cidade. (Foto: Luciano Justiniano)

O projeto começou com 25 pescadores que frequentam as aulas no espaço da Colônia de Pescadores, todos os dias, no fim da tarde. O exercício da profissão deles obriga o projeto a se adaptar. Muitos dos alunos saem para o rio e ficam Pantanal adentro por semanas, morando nas chalanas. Levam, consigo, tarefas preparadas pela professora Janete. “Eles levaram as atividades e fizeram o compromisso de fazer”, relata Janete, com a confiança de que só dispõe quem realmente conhece a realidade peculiar destes alunos. Este é apenas um dos desafios do projeto.

Outro desafio se refere à demanda que, com o desenrolar das atividades, está crescendo. Mais pescadores, confiantes no projeto, têm demonstrado o desejo de aprender a ler e a escrever. É o caso, por exemplo, de um grupo de pescadores residentes em Salobra, distrito que fica a cerca de 20 quilômetros da cidade. Eles querem fazer parte do Barco de Letras.

Janete e a organização do projeto deram um jeito. Vão ampliar as ações e levar aulas para Salobra, aos sábados. A Colônia de Pescadores como personalidade jurídica, se tornou parceira da iniciativa e vai garantir o transporte para a Janete ir até Salobra nos fins de semana. Outros parceiros estão surgindo no caminho, doando, entre outras coisas, mesas e material escolar. O sonho dos pescadores está mobilizando a comunidade. Ler e escrever está sendo, para eles, o começo de uma nova história.

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A sede da Colônia de Pescadores serve como espaço de  sala de aula. (Foto: Luciano Justiniano)
A sede da Colônia de Pescadores serve como espaço de sala de aula. (Foto: Luciano Justiniano)
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