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Comportamento

Campo-grandense paga para ser humilhado e ainda aplaude espetáculo em pé

Espetáculo do comediante "Carioca" mostrou como vale sair da bolha para ver o quanto nossa cova anda funda.

Ângela Kempfer | 14/05/2018 10:33
Carioca no palco como o personagem Bolsonabo, o último a entrar em cena. (Foto: Divulgação/Sparta Produções)
Carioca no palco como o personagem Bolsonabo, o último a entrar em cena. (Foto: Divulgação/Sparta Produções)

Depois de duas horas pasma com o escracho do humor nacional, quando o show de piadas velhas parecia não ter fôlego para produzir nada pior, o espetáculo “Carioca, em más companhias” termina no apogeu do mau gosto com a derradeira frase: “Se arte é criança colocar a mão em homem pelado, ejacular em mulher no ônibus é grafite!”. O público aplaude em pé, claro, gargalhando, apesar de ser chamado de burro e de malandro durante praticamente a noite inteira.

A experiência do último sábado (12), no Teatro Glauce Rocha, coloca o cidadão dentro de um daqueles filmes que mostram como ideias apresentadas a princípio de maneira inofensivas, engraçadas, podem se transformar em algo realmente perigoso. O sujeito vira personagem de produções do tipo "A Onda" ou "Ele está de volta", ambos sobre a possibilidade de ascensão do nazismo ainda nos dias atuais. E, pode ter certeza, não estou exagerando, nem querendo discutir política partidária.

O show serviu para fazer fervilhar o fígado, reforçar o estoque de críticas contra o campo-grandense médio mas, principalmente, ensinar o quanto vale sair da bolha para conhecer determinados artistas e assim entender que nossa cova fica cada vez mais funda. 

Marvio Lúcio, o tal Carioca, é um talento para reproduzir vozes e sons. Sabe, por exemplo, imitar um avião como ninguém. Mas é só isso. De resto, finge ser corajoso ao provocar o público com ofensas infantis e não vai além de detonar cachorro morto na política, como Dilma, Lula e, inclusive, o presidente Temer, a quem o comediante defendia até pouco tempo, mas que diante da rejeição popular resolveu transformar em "velho morto" que não come a esposa.

Mas Carioca não foi o triste protagonista da noite. O campo-grandense conquistou o mérito nos minutos finais do jogo.

Hitler volta a ser ícone em Alemanha moderna no filme "Ele está de volta", de David Wnendt (2015). (Foto: Reprodução Er ist wieder da)
Hitler volta a ser ícone em Alemanha moderna no filme "Ele está de volta", de David Wnendt (2015). (Foto: Reprodução Er ist wieder da)

O espetáculo começa com o personagem Jô Suado, que abre a sessão transformando pessoas da plateia em sacos de pancadas para as cansativas grosserias durante o show da autocracia Carioca. Na hora, lembrei do consumidor que é esculhambado, mas continua lotando aquela loja popular famosa da Rua Calógeras.

O bancário gordinho, que nasceu em Bauru (SP), logo é apelidado de capivara e chega a esboçar algum constrangimento ao ganhar o rótulo de burro, por não saber declamar uma poesia de Carlos Drummond de Andrade. 

Outro alvo é um senhor de 65 anos, que começa levando puxão de orelhas por ter direito à meia-entrada, o que para o humorista é produto da malandragem do brasileiro. É perturbador ver tanta gente achando aquilo divertido. Mas dá para entender, porque o nazismo já ensinou o quão sedutor é pertencer a um grupo, independente de qual seja.

Jô Suado sai do palco repetindo centenas de vezes a palavra “cagar”, como criança pequena que acha graça de palavras relativas ao sistema excretor, em uma sequência pré-gravada e exibida em telão que, sinceramente, chocou pela vergonha alheia. Nessa hora, o único alento é lembrar que você não precisou pagar R$ 80,00 pelo ingresso e entrou como jornalista convidada.

Na sequência, Carioca imita o apresentador Bóris Casoy, canta como Lulu Santos e vira o Pastor "Cráudio". Independentemente do personagem, é humor como nos anos 1980, manjado, que faz piadinha de gay, zomba da velhice, tira sarro de gordo, compara vida de casado aos dias de solteiro, defende que mulher ideal é a gostosa e repete os clichês baratos que há muito já foram desbancados pela qualidade de produtos inteligentes como do Porta dos Fundos, uma transformação sentida até em programas clássicos da Globo, como o Zorra Total.

Cena do filme A Onda, do diretor Dennis Gansel, lançado em 2008. (Foto: Reprodução Die Welle)
Cena do filme A Onda, do diretor Dennis Gansel, lançado em 2008. (Foto: Reprodução Die Welle)

O choque de realidade chega definitivamente com "Bolsonabo", o último personagem em cena, uma muleta para Carioca despejar na plateia o que sobrou do estoque dos extremos preparados para a noite. Ele consegue cuspir o politicamente incorreto machista e homofóbico, escondido nas sobrancelhas grossas do pré-candidato radical.

Mas de repente, como crise de consciência, resolve dar lição de moral. O problema é que já é bem tarde.

O comediante pega um fuzil de brinquedo tentando mostrar ao público que o tal candidato é uma farsa e que armamento liberado para compra em supermercado não vai salvar ninguém da miséria e da violência. Mas basta uma resposta do senhorzinho simpático de 65 anos, aquele da meia-entrada, para a galera ir à loucura e o tiro acertar o pé de Carioca. "Pelo menos, Bolsonaro é bem melhor que esse outro aí (Lula)", grita o senhor, aplaudido com fervor pelo público que lota o teatro.

E o artista, que durante 2 horas elegeu como inimigo comum o PT, chamando Dilma várias vezes de velha sapatão das "tetas murchas" e dizendo que não vê a hora de Lula ter de "cagar" no chão de uma penitenciária, ainda achava que alguém entenderia o recado contra Adolf Hitler.

Por fim, a fila para autógrafos na porta do camarim me faz sentir ridícula, por menosprezar a capacidade de empatia de um sujeito sem graça que colocou em xeque em apenas 2 horas tantos valores dignos da sociedade.

Nessa hora  deve ter gente ai falando: "Discurso de petralha! Baboseira de feminista". Lamento se você pensa que só petista ou feminista têm massa cinzenta sobre os ombros.

Bom seria se na primeira intervenção do comediante, o bancário de Bauru fosse iluminado pela poesia de Drummond e recitasse ao público o "Congresso Internacional do Medo", sobre tempos de guerra e desiquilíbrio.

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

(*) Ângela Kempfer é jornalista e editora do Lado B do Campo Grande News.

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