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Comportamento

Cansado do preconceito, irmão caçula de Eliza Samudio decide falar

Arlie vive em São Paulo, se identifica como uma pessoa não binária e rompe o silêncio após anos de rejeição

Por Thailla Torres | 19/07/2025 07:27
Cansado do preconceito, irmão caçula de Eliza Samudio decide falar
Natural de Campo Grande, Arlie mora há seis anos na capital paulista. (Foto: Arquivo Pessoal)

Pouca gente sabe, mas Eliza Samudio, assassinada brutalmente em um caso que chocou o país em 2010, tinha um irmão caçula. Na época do crime,  Arlie Silva de Moura tinha apenas 11 anos. Hoje, aos 26, ele decidiu falar. Não sobre os detalhes do crime que virou manchete nacional, mas sobre tudo que veio depois: o silêncio, o preconceito e a sensação de ter sido apagado da própria história familiar.

Natural de Campo Grande Arlie  mora há seis anos na capital paulista. Trabalha com atendimento ao cliente e se identifica como uma pessoa não binária, ou seja, que não se reconhece totalmente como homem ou mulher. "Sou pansexual e não peço aceitação, mas exijo respeito", resume.

A decisão de procurar o Campo Grande News partiu de um incômodo antigo: “Sempre perguntaram da Eliza, mas nunca se perguntaram: ‘e o irmão dela?’”, conta. Para Arlie, a narrativa pública da irmã sempre ignorou que ela tinha uma família mais ampla e uma história que deixou marcas também nos que ficaram. “Apagaram uma parte da história dela. E apagaram a minha também.”

Filho de Sônia de Fátima Marcelo da Silva e Hernani Silva de Moura, Arlei cresceu no Mato Grosso do Sul em uma rotina marcada por relações familiares difíceis. “Com minha mãe sempre fui próximo, muito parceiro mesmo. Já com meu pai, era uma relação fria. Às vezes passávamos meses sem nos falar, mesmo morando na mesma casa”, relembra.

Foi nesse ambiente que, aos 16 anos, ele decidiu se assumir homossexual. Mais tarde, entendeu-se como pansexual e, recentemente, compartilhou com a família sua identidade de gênero. "Quando falei da não binariedade, a distância com a minha mãe aumentou."

A revelação não foi bem recebida. Arlie relata episódios de violação de privacidade, como quando teve o celular vasculhado para expor conversas íntimas. Também enfrentou intolerância religiosa e comentários depreciativos dentro da própria família. “Teve primo que também se assumiu, mas a diferença é que diziam que ele ‘se comportava como homem’. É um preconceito muito velado.”

Cansado do preconceito, irmão caçula de Eliza Samudio decide falar
Arlie se identifica como uma pessoa não binária, ou seja, que não se reconhece totalmente como homem ou mulher

Eliza no tempo da infância

A lembrança de Eliza é fragmentada, como a de qualquer criança pequena diante de uma figura que vinha e ia. “Lembro que ela era alta, que teve dificuldade de entrar no carro uma vez, e lembro do cheiro dela”, conta. Uma das últimas memórias juntos foi em uma viagem a Foz do Iguaçu em 2009, pouco antes da tragédia. “Fomos passear juntos, mas depois disso nunca mais a vi.”

Com a morte de Eliza, Arlieperdeu mais do que a irmã: perdeu também a estabilidade emocional e, aos poucos, o vínculo com a mãe. “Ela não fala de mim nas entrevistas, não me cita. No velório do meu avô, no ano passado, foi a última vez que nos vimos.”

O relacionamento com o sobrinho, filho de Eliza, também é distante. “Fui bloqueado no Instagram. A última vez que falei com ele foi em 2022, em Campo Grande. Ele me tratou bem, mas o contato é raro.” Arlie diz que ficou sabendo que o menino jogaria em clubes como Botafogo e Atlético-MG pela imprensa, não por canais familiares. “Queria poder vê-lo, até pedi uma vez para visitar no Rio, mas não foi possível.”

Apesar de tudo, não guarda rancor da mãe. “Não tenho raiva dela. Reconheço que já me ajudou, mas hoje nossa relação é fria. Ela quer controlar meu jeito de ser e de me vestir.”

Em 2020, Arlie recebeu o diagnóstico de HIV. Desde então, soma mais uma camada à sua luta por reconhecimento. “Eu vivo com HIV e sigo. Já fui muito julgado, mas hoje sou uma pessoa forte. Cansado de ser invisível, resolvi contar minha história. Não pra tirar o espaço de ninguém, mas pra existir.”

Mesmo ciente de que falar pode trazer julgamentos, ele acredita que dar esse passo é necessário. “Essa entrevista é sobre respeito. Sobre lembrar que, por trás de um nome conhecido pela tragédia, havia uma família. E eu ainda estou aqui.”

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