Câncer e um olho a menos não pararam mãe e filha na costura
Cleonice enfrentou tumores e Hiolanda lidou com o preconceito, mas a costura virou um abrigo para as duas
Entre uma costura e outra, Cleonice Nascimento, de 65 anos, tira os olhos da máquina para falar com orgulho da profissão que exerce há 50 anos e que deixou de herança para a filha, Hiolanda Barreto, de 43. Mesmo a contragosto da herdeira, o legado foi aceito pela necessidade, que depois virou paixão. Nem o câncer de Cleonice ou o preconceito que a filha enfrentou por ter perdido um olho conseguiram fazê-las abandonar o trabalho.
Entre uma costura e outra, Cleonice Nascimento, de 65 anos, tira os olhos da máquina para falar com orgulho da profissão que exerce há 50 anos e que deixou de herança para a filha, Hiolanda Barreto, de 43. Mesmo a contragosto da herdeira, o legado foi aceito pela necessidade, que depois virou paixão. Nem o câncer de Cleonice, nem o preconceito que a filha enfrentou por ter perdido um olho conseguiram fazê-las abandonar o trabalho.
Juntas, em uma portinha simples na Rua Rui Barbosa, ali, no encontro com a Rua Maracaju, elas dividem os panos e agulhas há 8 anos. Em meio aos retalhos de tecido e carretéis de linhas, elas compartilham como tudo isso aconteceu.
Cuiabanas, a família tem história e não é das felizes. Cleonice aprendeu a costurar ainda criança e amou logo de cara. Fazia roupinhas de bonecas e, anos depois, o gosto virou profissão que ela não abandona por nada.
No Estado vizinho, ela tinha um ateliê e vivia bem, mas a traição do marido fez com que os planos mudassem e a realidade também.
“Estávamos bem financeiramente. Aí vendi a casa lá e comprei em Rio Verde de Mato Grosso porque minha irmã era de lá. Achei que mudando de cidade iria esquecer o que ele fez, mas aquilo vem com a gente”.
Depois disso, Cleonice ainda tentou manter o casamento por mais três anos, até que acabou de vez. Nesse meio tempo, o marido disse que iria para Campo Grande, e a família foi atrás. “Quando estávamos estabilizados em Rio Verde, tinha um ateliê lá, ele disse que iria vir para cá e deixou a gente. Viemos atrás depois porque ele falou que era melhor. Vendi a casa lá e vim, aí ela ficou doente do olho. Chegamos aqui e ele foi para Cuiabá para levar uma caminhonete e nunca mais voltou.”
Cleonice começou no ateliê, que hoje é dela e da filha, como funcionária. Ela conta que, quando chegou em Campo Grande ninguém conhecia o trabalho dela e foi difícil arrumar emprego. Para sustentar a casa sozinha e os 4 filhos, ela precisou vender até botijões de gás.
Após a morte da proprietária do espaço, o irmão da dona, que não estava bem para administrar, deixou para ela o ponto alugado. Cleonice convidou a filha, que na época estava desempregada, para dividir com ela a pequena sala comercial.
“A dona gostou de mim e primeiro montou um ateliê para mim perto do Hospital do Câncer. Ela faleceu justo com isso, de câncer no estômago. Morreu com um mês que descobriu. Faz quase 8 anos que estou nesse ponto agora.”
Hiolanda entra na conversa com um olhar de quem carrega uma história tão forte quanto. “Eu não queria ser costureira”, começa, com a suavidade de quem, apesar de se apaixonar pela costura, ainda sente os vestígios da resistência que teve que vencer.
Desde criança ela brincava com bonecas e também fazia roupinhas. Inclusive, uma tia dizia que ela seria costureira como a mãe.
“Falei ‘Deus me livre’, porque achava a vida da minha mãe muito cansativa. Ela vivia trabalhando. Quando meu pai chamava para sair, ela falava que não podia porque tinha que entregar a costura. Cuspi para cima e ainda casei com um alfaiate.”
Ela conta que o marido fazia uniformes para um hospital em Bauru, interior de São Paulo, e com a alta demanda não teve jeito senão ela entrar na jogada também. “Ele entregava umas 7 mil peças por mês, aí me pediu ajuda, não tinha costureira por lá. Aprendi a costurar chorando, mas já fazem mais de 20 anos. Aí me apaixonei. A situação apertou, vim embora”.
Aos 16 anos, Hiolanda perdeu um olho. Teve uma infecção e ficou cega no dia do aniversário. A mãe chegou a vender a casa que a família tinha em Rio Verde para tentar salvar o globo ocular da filha, mas não teve jeito., ela ficou cega. Hoje ela usa uma prótese no lado direito.
“Todo mundo te discrimina. Comecei a trabalhar como costureira, mas era muito massacrante, aí pedi para minha mãe para a gente abrir algo nosso. Na época ela estava costurando em casa para a dona desse ateliê em que estamos. Meus patrões não sabiam que eu não tinha um olho e quando souberam me mandaram embora. Tive conjuntivite justamente no olho da prótese e tinha que ficar sem. Ficaram bravos.”
Hoje as duas dividem o espaço, mas cada uma tem seus próprios clientes. Com a escassez de costureiras pela cidade, o ofício é cada vez mais raro e há quem ache que costurar não dá dinheiro. As duas discordam, inclusive se mantêm apenas disso.
“Estamos aqui até hoje. O pessoal vem muito, fazemos de tudo: costura sob medida, vestido de noiva, conserto também. Eu sempre amei o que eu faço. Aprendi sozinha, com 9, 10 anos fazia roupa de boneca, calça boca de sino, camisa xadrez. As vizinhas viam e saíam mostrando. Fazia coisa da moda com pedaço de pano velho, a gente era humilde. Hoje ninguém mais quer fazer esse serviço. Conserto dá mais dinheiro que fazer a roupa, criar o modelo”, conta Cleonice.
E, não bastasse os perrengues da vida, ela também já enfrentou a batalha contra o câncer. Já tirou seis tumores e passou por um AVC. Segundo Cleonice, ela não deixará a costura tão cedo. “Vou trabalhar muito ainda. O que mais gosto de fazer é roupa masculina, calça social, camisa, mas o que chegar eu faço”, ela diz
Confira a galeria de imagens:
Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial, Facebook e Twitter. Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui).
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News e siga nossas redes sociais.