No SUS, médica travesti Giulia deu voz às “travas” apesar do medo
Sem orgulho de ser uma das poucas médicas trans, senão a única na saúde pública de MS, ela dispensa os títulos

Giulia Rita, 26 anos, resolveu que usaria a medicina para dar dignidade, voz e acolhimento para pessoas transsexuais. Sem orgulho de ser uma das poucas médicas trans, senão a única, no SUS de Mato Grosso do Sul, ela dispensa os títulos. Para Giulia, o que importa é ajudar a comunidade a ser vista pelo sistema de saúde e pela própria sociedade.
Sem medo da bancada cristã e conservadora, Giulia recebeu justamente o que não ostenta, um título. Mas usou o palanque da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, para contar sobre a importância do SUS na vida das pessoas trans.
Ela foi homenageada na sessão solene sobre “Diversidade e Cidadania: trajetórias profissionais que transformam histórias e constroem o futuro”. O objetivo da cerimônia era reconhecer o papel fundamental que as pessoas LGBTQIA+ desempenham no exercício de suas profissões.
A médica fala que não há orgulho em ser reconhecida assim se não há mais travestis ocupando o mesmo espaço que ela.
“Como é sofrido e solitário ser uma travesti que trabalha no SUS. É dolorido porque vejo diariamente as consequências de dois graves problemas que afetam minha comunidade: o desemprego e as violências que dificultam nossa permanência nos espaços de trabalho. Em um mundo que pauta o acesso à moradia, educação e saúde pela renda, a falta de trabalho é quase uma sentença de morte".
Ela fala sobre a falta de oportunidades para pessoas trans e que não quer que vejam ela como alguém que chegou no "sucesso", porque ela é apenas uma exceção.
A medicina nunca foi um sonho de infância para ela, que não nasceu do estetoscópio de brinquedo nem da fantasia de usar o jaleco branco. Foi em uma aula em que ela descobriu que saúde não é favor, é direito, e que ela poderia, de fato, ser a diferença na vida das “irmãs travas”, como ela chama, através da profissão.

“Naquele momento eu me encontrei enquanto cidadã, enquanto profissional. Ali eu achei uma coisa muito forte, muito importante, pela qual valia a pena lutar. Achei um propósito, e isso me motivou muito durante a graduação.”
Nascida em Brasília e criada entre a cidade natal e Fortaleza, Giulia veio para o Mato Grosso do Sul em 2016 para estudar em Três Lagoas. Em 2017, no segundo ano de faculdade, ela se entendeu como uma pessoa trans. A notícia foi compartilhada apenas com algumas pessoas mais próximas.
“Justamente por medo de muita violência, por medo de como isso iria impactar a minha inserção dentro da graduação, por medo, por justamente não conhecer nenhuma outra pessoa trans que era médica. Eu segurei as pontas.”
Ela conta que a ficha caiu de vez quando convidou para uma palestra uma travesti que há anos luta para conseguir existir em Três Lagoas e que, a partir dali, tudo mudou.
Eu lembro que, naquele dia, vi aquela travesti dentro daquela sala de universidade falando. Eram coisas bem pesadas que ela trazia, mas muito reais. Eu lembro de ficar fascinada. A questão de gênero já vinha se desenvolvendo há algum tempo. Até que, em 2019, chegou um momento em que as contrações começam. Essa minha gestação de mim mesma. Nesse ano eu tenho esse parto de mim mesma e transiciono de fato. Passo a assumir meu nome, Giulia Rita.”
A vida nos hospitais sempre foi um grande desafio para ela, que já enfrentou diversos tipos de preconceito e discriminação e que já viu uma “irmã trava” morrer no plantão em que tomava conta.
Giulia está se especializando em atendimento de emergência e, ao contrário do que todos acham, ela não é médica da família nem se limita apenas ao público trans. Inclusive, esse foi um receio durante a trajetória clínica dela.
“Tinha muito medo de acabar sendo reduzida a uma pessoa que só saberia falar sobre saúde de pessoas trans, que não falaria sobre saúde pública, sobre política, sobre outras áreas e outras habilidades. Eu comecei a atuar na área de medicina de emergência em 2023. Eu era apaixonada pelo que eu fazia, eu gostava muito e, mais uma vez, eu era a primeira residente e trans ali. Isso não é uma coisa que me orgulha nem um pouco. Eu detesto esse tipo de romantização.”

Devido a situações de transfobia, ela desistiu da residência em um hospital grande da Capital, mas continuou atuando no SUS, nas UPAs( Unidade Pronto Atendimento) e CRSs (Centros Regionais de Saúde).
Este ano consigo finalizar a graduação. Tenho muita gratidão, porque é uma área que eu realmente gosto bastante, que eu tenho muito apreço, mas, ainda assim, não é fácil. Eu diria que o meu propósito, o que me faz trabalhar na medicina é lutar ativamente para que as pessoas tenham o direito de viver e de morrer com dignidade. Porque eu acho que isso ainda é um direito exclusivo para muito poucos. Eu gostaria que a gente pudesse ter acesso a isso.”
Ela pontua que o SUS vem de uma lógica dos movimentos populares das décadas de 70 e 80, da reforma sanitarista e do momento em que a população passou a entender a saúde enquanto direito, e não mais enquanto mercadoria.
“Como diria Linn da Quebrada: sou filha das travas e obra das travas. Não olhem para mim e pensem ‘as pessoas trans chegaram lá’. A gente não chegou. Eu sou exceção da exceção. A gente ainda não tem vagas afirmativas para pessoas trans dentro das universidades, de concurso público. A gente não está chegando. Ainda não temos direito e não estamos permanecendo nas universidades, nos espaços de trabalho, em mestrados ou doutorados. A gente ainda continua degolada, na prostituição, em empregos informais.”
Giulia dá uma dica às irmãs travas de que não é preciso achar meios de não sentir raiva. Pelo contrário, afirma que o sentimento é importante. Entretanto, pontua que elas precisam arrumar alguma forma de organizar essa raiva.
“Direcionar essa raiva não para o nosso próprio corpo, não para as nossas próprias irmãs, não para nossa própria comunidade, mas direcionar essa raiva para fora, para quem de fato está praticando e mantendo um sistema baseado em ódio, intolerância, em fundamentalismo. Se inspirem, nos inspiremos umas nas outras, nas formas que a gente encontrar de estar juntas, de se organizar, de sobreviver e de lutar pelo direito de um amanhã, direito de uma vida com dignidade.”
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