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A psicologia em defesa da laicidade: reflexões sobre ofensiva contra a categoria

Por Tatiana Lionço (*) | 14/10/2017 10:34

A ascensão do conservadorismo encontra na incidência do fundamentalismo religioso na política uma de suas expressões contemporâneas. Como força antidemocrática, autoridades religiosas neopentecostais e seus aliados vêm desencadeando retrocessos na agenda de direitos sexuais, com ênfase para direitos conquistados por mulheres e minorias sexuais, entre as quais a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

A Psicologia brasileira tem sido objeto de ofensivas legislativas para alteração de normativas deliberadas democraticamente pela categoria profissional, como é o caso da Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia.

Além da proposição de decretos legislativos que visam sustar os efeitos da normativa que veda a patologização e tratamento das homossexualidades na lógica da reversão da orientação sexual, mais recentemente uma liminar da Justiça Federal impôs uma interpretação à Resolução CFP 01/99 de modo a alterar o sentido originário da normativa.

A partir de uma ação pública apresentada por um conjunto de profissionais de Psicologia, a decisão judicial entendeu que o direito à pesquisa científica e exercício profissional dos mesmos não deveria ser cerceado pelo veto à patologização e reversão da homossexualidade afirmados pela resolução, abrindo, assim, brecha legal para a realização de terapias de reversão da orientação sexual supostamente por interesses científicos.

O Instituto de Psicologia e o Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero emitiram notas de posicionamento sobre a matéria, criticando a decisão judicial e contribuindo para o debate público sobre a pertinência da norma do CFP, reafirmando a historicidade do compromisso da Psicologia com a não patologização das homossexualidades e a existência de estudos científicos que comprovam o agravamento do sofrimento psíquico decorrente de tais terapias.

Tais posicionamentos são importantes também para lembrar que tanto a ciência quanto as deliberações da categoria profissional são decorrentes de esforços coletivos na produção de conhecimento e sua revisão crítica, bem como na construção de uma identidade profissional em consonância com princípios democráticos e de defesa dos direitos humanos.

É importante mencionar que a via da judicialização é expressão de viés autoritário na condução de uma mudança normativa que não apenas não encontrou efetivação pela via legislativa como também dispõe de ampla resistência e oposição por parte da sociedade civil e da academia.

O que está em jogo é o aviltamento da Psicologia, seja por parte de parlamentares que destituem o Conselho Federal de Psicologia da legitimidade da regulação ética do exercício profissional, seja por parte de um grupo de profissionais que desconsidera o processo histórico de deliberação da categoria.

Não é coincidência que uma das proponentes da ação pública que levou à decisão liminar de reinterpretação da normativa é uma pessoa que se apresenta em nome da fé religiosa, não dispondo de trajetória de produção científica de conhecimento em Psicologia e tendo tido o registro profissional cassado em 2009 por violação ética no exercício profissional.

Em nome não apenas da Psicologia como ciência e como profissão, mas principalmente em nome de gays, lésbicas e bissexuais que tem seus direitos reiteradamente violados em função do preconceito e atribuição de anormalidade, a Resolução 01/99 precisa ser defendida contra a ofensiva fundamentalista.

A Psicologia não permitirá ser usada para forjar manto de cientificismo para o fundamentalismo religioso que fragiliza a democracia e a laicidade do Estado. A Psicologia brasileira não apenas reafirma a importância da Resolução CFP 01/99 como também vem desenvolvendo campanhas pela despatologização das transexualidades e travestilidades, primando pela consolidação da democracia e respeito aos direitos humanos em nosso país.

(*) Tatiana Lionço é professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia e Coordenadora do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília. Graduada, mestre e doutora pela UnB. Tem se dedicado ao estudo do fundamentalismo religioso na política nacional, das redes de proteção para a comunidade LGBT universitária e dos processos de subjetivação e sua relação com gênero e sexualidade.

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