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Brasil potência no mundo da ciência: entre o intelectual e o manicomial

Por Valdemir Pires | 22/06/2017 15:21

Não se pode dizer ao certo se por conta de uma "cultura da avaliação" – seja lá o que isso signifique – ou se por um instinto de vaidade, quando são divulgados os midiáticos rankings mundiais (Quacquarelli Symonds World University, por exemplo), continentais/subcontinentais ou nacionais (Guia do Estudante e suas estrelas, por exemplo) que pretendem avaliar a qualidade das universidades (com critérios e métodos que não figuram entre os menos controversos), saem comemorando os bem posicionados e ficam amuados, e às vezes são atacados, os que perderam posição (uns oportunistas não perdendo a ocasião para achincalhar a USP, por exemplo). Entra ano, sai ano, é sempre a mesma coisa. Fenômeno similar se verifica quando são apurados elementos a respeito da produtividade científica no país (que avançou que é uma beleza! – piscadinha) e é objeto de crescentes citações (outra piscadinha e um polegar em riste: "tiniu!"). Eu rio. Mas isso não faz a menor diferença: por que eles (esses avaliadores e seus seguidores de ocasião), eles mar, oceano; eu rio. Se não convirjo para eles, que poderá ser de mim? De rio a córrego, de córrego a nada, nadar não mais, navegar, então, nem se balbucie. ["O homem é o único animal que ri e chora, pois é o único animal que percebe como as coisas são e como deviam ser" (William Hazlitt). Talvez eu ainda seja humano.]

Eu me pergunto se a educação e a ciência melhoraram no Brasil desde que começamos a apertar esse parafuso, supostamente neutro e impessoal, das avaliações educacionais e da produção científica, rankings sempre à espreita. A educação, no geral e em todos os níveis, parece não ter melhorado qualitativamente, apesar de todo o investimento em avaliação desde os paulorenatianos anos 1990 (como se a sina do quantitativo reduzindo, "por natureza", o qualitativo, outra vez, desafortunadamente, desse o ar da graça por aqui). Sobre isso, muito a pensar, inclusive, antes de tudo, se os fundamentos e metas da política educacional são sólidos e, em sendo, se são de fato, quotidianamente perseguidos, com compromisso e competência, pela imensa burocracia educacional do país, manejando seu objeto num cenário repleto de interesses privados e até de interesses estrangeiros, que tratam a educação como uma mercadoria igual a todas as outras, quando, certamente, não é.

Quanto à produção científica e ao ensino superior (graduação e pós-graduação), alguns estão chegando à conclusão de que se pode liberar uma tímida comemoração, graças ao desempenho de umas poucas instituições de ensino superior brasileiras nos mencionados rankings e graças aos cálculos de impacto de artigos de pesquisadores nacionais. Não sei. Penso (lugar comum) que um copo pela metade pode ser considerado meio vazio ou meio cheio, dependendo da postura de quem o observa. Constatar que as melhores universidades brasileiras estão lááá embaixo nos rankings e que a imensa maioria delas nem existem ali, levando-se em conta os critérios dos "planilheiros globais", deve ser motivo para uma imensa preocupação. Primeiro porque todo esforço feito leva a pouco resultado (USP, nossa top, bem abaixo da 100ª. posição em 2017); segundo, porque é claro que o sistema universitário brasileiro, como um todo, não tem a menor condição, com o financiamento e os acúmulos existentes, de reproduzir o desempenho das melhores instituições nacionais (e melhores não por causa dos rankings, mas por motivos que não escapam à primeira olhadela – fontes de financiamento e expertise acumulada). "Menas comemoração aí, caipirada!", ouvi dizer outro dia, e tendi a concordar: será que não estamos acolhendo a ideia de ilhas de pseudo-excelência e esquecendo que o mar é bravio e que "navegar é preciso", o que não se faz em terra, nem que seja firme?

Cresceu e ganhou visibilidade internacional a "ciência brasileira". Um pouquinho, de fato. Mas o próprio método científico exige que, para dizer que B (variável dependente) se modificou porque A (variável independente) foi alterado, C, D e E (variáveis não consideradas) sejam suficientemente isolados. Ora, será que a produtividade e a visibilidade da ciência brasileira melhoraram somente ou fundamentalmente porque o país adotou um sistema de avaliação supostamente eficiente e severo? (Aqui lembro Paulo Freire, quando dizia apreciar o silencioso, mas não o silenciado – prefiro o produtivo ao produtivista). Ou será que mais financiamento (que houve) e o aumento do número de pessoas pesquisando e publicando (fato) tiveram o efeito que tudo na vida tem?: "mais" carrega consigo a probabilidade de maior impacto, mesmo que se meça a produtividade per capita. Além disso, é preciso questionar sobre o que se considera nesse "mais". Por que mais artigos em periódicos científicos ou mais citações desses artigos são as variáveis quase exclusivas para medir produção científica? E porque tanta obcessão pela vitrine: vamos caprichar no produto, primeiro! Mais: por que livros são abertamente desencorajados? Raios! Está claro que é difícil, no mundo de hoje, falar de erudição, mas, poxa, o contentamento com compilação não pode ser suficiente.

É preciso pensar nisso, porque o pesquisador típico, "lattescrata", que o Brasil está produzindo em profusão, é uma caricatura: compila aqui e ali, fazendo uso das facilidades das bases de dados informatizadas e facilmente acessíveis pela internet, e publica à moda salami science, o que lhe facilita a vida, porque as suas fatias de salame vão rechear um sanduíche cujos principais ingredientes já estão ali, prontinhos, feitos pelos líderes internacionais das respectivas áreas e temas. Esse pesquisador-padrão escreve textos-padrão: introdução, literatura precedente e problema, hipóteses, metodologia, discussão, resultados, referências (para facilitar a leitura, claro, embora quase ninguém vá ler...), e segue as temáticas standard - eterno caronista do pensamento alheio – scientific free rider. Cria-se a tradicional corte acadêmica: o mestre e os puxa-sacos arrivistas (discípulos são de outros tempos). Com isso, a paisagem universitária vai mudando e ficando com a fisionomia do cerrado: plantação rala, com raras ou nenhuma árvore frondosa, porque esta depende de tempo para se formar e não sobrevive à sombra permanente. Daí não surgirão, a não ser por acaso, acadêmicos de alto quilate, formuladores e articuladores do pensamento e, o que é pior, os que daí brotam acham que o são, inebriados pelo brilho falso de um sucesso intelectual que não passa de prêmios recebidos de si mesmos: afinal, os mais bem-sucedidos são os próprios controladores dos sistemas de avaliação. Viceja uma elite intelectual servil, que internaliza uma lógica do fazer científico que desconsidera as especificidades históricas da ciência no país e seu papel, e pensa que a imitação competente será suficiente para construir o Brasil-potência no mundo científico. "Este é um país que vai pra frente, oh, oh, oh – oh, oh!" (em que "gente amiga e tão contente" já era, principalmente no ambiente acadêmico).

Fico lembrando, aqui, a propósito, Celso Furtado: ele dizia que é um mito a ideia de que o desenvolvimento segue etapas pré-definidas. Não concordava que os países subdesenvolvidos atingiriam o desenvolvimento na medida em que fossem completando as fases necessárias a isso, como tinham feito as nações ricas. O desenvolvimento, ele mostrou, é um fenômeno histórico e que, portanto, acontece sob condições específicas em cada tempo e lugar, com enorme desvantagem para os atrasados, porque os avançados é que impõem as condições para sua ocorrência, auto-beneficiando-se. O mesmo se dá com o desenvolvimento da ciência. Ela não existe desprovida de relações e instituições muito concretamente dependentes do momento histórico e dos atores político concretos, com seus respectivos interesses. Achar que USP, UNICAMP, UFRJ, UFMG, UFRGS, outras poucas federais e estaduais e umas PUCs algum dia serão Harvard, MIT, Stanford, Cambridge ou Oxford é o mesmo que imaginar que Brasil e Argentina algum dia serão Estados Unidos ou Japão, se seguirem os mesmos passos dos que se acham no topo do ranking, se fizerem o que eles fazem. É! Está faltando o Celso Furtado do desenvolvimento científico brasileiro, para iluminar a escuridão. Inclusive para mostrar os interesses estrangeiros por trás de rankings, periódicos e instituições acadêmicas globais diversas, cultivadores e disseminadores de uma certa internacionalização (outra onda inconsequente, que pode mais drenar recursos do que trazer benefícios) que desconsidera totalmente a "deterioração dos termos de intercâmbio" científico, sem vislumbrar sequer alguma possibilidade de se agarrar alguma "vantagem comparativa" dos distintos fazes da ciência. Olhai os lírios do campus, caipirada: eles não são menos belos do que as papoulas europeias ou as orquídeas africanas. E eles são nossos; não sobreviverão sem cultivo.

Cultivar a ciência, sabe-se, é formar cientistas e urdir instituições de ensino e pesquisa. Não se forma bons cientistas rifando a graduação para fortalecer a pós-graduação. O Brasil está fazendo isso. Professores e alunos de graduação e pós-graduação estão vendo o derretimento da qualidade do ensino superior e da pesquisa todo dia, dentro e fora das salas de aula. A graduação já é considerada formação insuficiente até para o mercado de trabalho e há uma corrida para a pós-graduação por razões nada científicas – bolsas, empregabilidade, falto de outros afazeres etc. O mestrado virou tapa-buraco da graduação. As dissertações e teses são avaliadas por bancas que se deparam com trabalhos pouco maduros, porque devem obrigatoriamente ser concluídos em períodos curtos de tempo: uma fábrica de doutores não doutos, com as honrosas exceções de praxe. Com um agravante: o sistema universitário já dá sinais de não ter potencial para absorvê-los.

É, urge que essas coisas sejam avaliadas, pois custam muito e, sobretudo, configuram o futuro de uma nação e de seu povo. Mas as avaliações que estão postas não servem, pelo jeito. É preciso algo mais. Talvez seja o caso de diferenciar entre avaliação da ciência, da academia e da universidade. Hoje, o foco quase exclusivo – ou pelo menos aquele que mais afeta os professores e pesquisadores das universidades públicas, os que fazem o grosso da pesquisa no país e geram os profissionais mais qualificados (por enquanto) – é o da ciência: eles valem o quanto publicam; se não o fazem ou se ficam abaixo de um mínimo esperado (imposto, na verdade), ou se dirigem seus textos a periódicos de baixo rankeamento Qualis, passam a sofrer bullying entre os pares e alunos, correndo o risco até de expulsão. O ambiente é o de uma espécie de zoológico sem compartimentação entre os bichos diferentes. Que um professor tenha vocação para o ensino de graduação e possa, com seu trabalho bem feito, oferecer egressos com elevado potencial para seguir nos estudos pós-graduados, é uma possibilidade inexistente quando este é avaliado somente pelo ótica do desempenho em pesquisa. O mesmo ocorrendo para o vocacionado para a extensão. Mas não seria assim se a avaliação não fosse somente científica, mas acadêmica, o que incluiria outros fazeres que não apenas a pesquisa: ensino e extensão universitária, por exemplo. Indo além, se a avaliação fosse mais ampla ainda, fosse universitária, ou seja, considerando a universidade como um todo: nesse caso, aqueles talentosos para a gestão das estruturas e relações que permitem a existência do fazer acadêmico e científico poderiam obter respeito e consideração, pois sem eles, que seria do sujeito eminentemente professor ou pesquisador?

O que seriam uma avaliação da produção científica, uma avalição acadêmica e uma avaliação universitária? A primeira – avaliação científica – é mais evidente: trata-se de avaliar o que foi produzido, com que produtividade e com que impacto. Mas com o cuidado de definir o que é produção científica, evidentemente: ela não é somente artigo; acrescentar livros, não basta: há relatórios de diversos tipos etc.; não basta um olhar quantitativo: considerar citações como suficiente impacto é complicado, num mundo em que é comum apanhar um trechinho (no fácil recorte-cole) e incluir no estudo para justificar a lista bibliográfica de referência, assim como é praxe incluir um artigo renomado para os avaliadores não considerarem que as referências de grande reputação na área ou no tema do estudo não foram contempladas. A avaliação por excelência passa pela leitura crítica dos textos – quem vai fazer isso? Ninguém. É por isso – por desistência de fazer o que é muito difícil – que a avaliação se baseia em atalhos, cada vez mais curtos. Ou seja, não se avalia nada substancialmente, como deveria ser: percebendo os avanços que cada autor e/ou estudo oferece ao conhecimento. Tudo acontece como na música popular: as avaliações são como as medições de audiência, as "paradas de sucesso". Que canção permanecerá no imaginário dos ouvintes, só o tempo dirá. Que texto científico perdurará na consciência científica, substancialmente, só o tempo determinará.

A avaliação acadêmica não pode ser confundida com a da produção científica. Trata-se da avaliação de afazeres mais amplo, que incluem ensino e extensão, por exemplo. Na universidade brasileira, a graduação é terminal para a maioria dos ingressantes: buscam formação profissional. Assim, rifá-la não só prejudica não só a qualidade na futura pós-graduação, mas também a formação de capital humano para o desenvolvimento produtivo. Há que se avaliar com rigor, mas diferente do estritamente científico, a formação oferecida nesse nível, e a contribuição dos projetos político-pedagógicos dos cursos. A extensão, por sua vez, além de propiciar o acesso de conhecimentos à comunidade, ampliando as chances de seu desenvolvimento, também, oferece oportunidade para um diálogo universidade-comunidade que pode influenciar socialmente as diretrizes para o ensino e a pesquisa – isso, por seu turno, não é de pouca valia, principalmente numa sociedade em que a academia não pode se dar ao luxo de não contribuir para a transformação social que reduza desigualdades, até porque é financiada por recursos retirados principalmente dos mais pobres (dada a profunda e perversa regressividade do sistema tributário nacional).

A avaliação da Universidade tem um caráter mais institucional, ao se focar nos aspectos de seu financiamento e funcionamento, bem como nas relações entre as instituições de ensino superior e a sociedade. Elementos de avaliação externa passam a ser relevantes, pois o retorno (e para quem) precisam ser analisados. Também temas de gestão devem ser enfrentados: a má administração dos recursos e das relações pode desbaratar avanços e acúmulos dos mais prestimosos professores e pesquisadores, assim como pode tirar a instituição dos rumos em que deveria entrar, estar ou permanecer. A implosão de ambientes acadêmicos ou o travamento de seu potencial não é incomum nas universidades, como consequência de má gestão universitária.

Uma das mais perversas características da má gestão universitária é assimilar acriticamente diretrizes recebidas de cima e impô-las autoritariamente para baixo. Cria-se com isso um ambiente conflitivo de trabalho, sem que seja obtido o desejado pelos impositores, ao mesmo tempo em que se fragilizam os subordinados. Estagnação institucional é o resultado da insatisfação em cima e em baixo, com muitos conflitos quotidianos. Apenas um exemplo. Há uma pressão absurda para que todos os departamentos das universidades tenham um programa de pós-graduação (sem isso perdem respeito) e também para que todos os professores estejam credenciados em algum programa (sem isso, perdem oportunidades, inclusive estagnando na carreira docente). Um programa de pós-graduação não se cria a toque de caixa: deve ser resultado do amadurecimento de uma trajetória de pesquisa em grupos. Existem departamentos em que o programa de pós-graduação precisa ser criado, mas enquanto isso, para não perderem oportunidades na carreira, alguns de seus professores se credenciam em programas externos, de outros departamentos ou instituições, enquanto que alguns se desdobram para criar um programa próprio, num horizonte de tempo que permita obter um projeto consistente. Como a avaliação docente capta resultados e desconsidera totalmente processos, além de se focar no individual e não no departamental, os docentes envolvidos em programas externos (em geral comprometidos com linhas de pesquisa que não são, nem poderão ser, as do seu departamento de origem) são bem avaliados, enquanto que os comprometidos com o projeto do departamento são mal avaliados. "Eu estou na pós, você não" passa a ser o troféu verbal da guerra entre pares, que pode descambar para a desqualificação de reputações, quando não de biografias inteiras. É a política do mérito único, sem qualquer mediação. Num caso como esse, a gestão e a avaliação institucionais captam diretrizes vindas do sistema de pós-graduação nacional, sem considerar a especificidade do departamento em questão, com isso gerando uma neurose interna em que ninguém, na verdade, tem razão: nem o professor que foi para um programa externo, defendendo sua própria pele, nem o professor que se manteve em busca do programa próprio, afinado com um projeto coletivo. Nada vale a pena quando a interna visão é estreita e turva (pequena) e a visão externa (do sistema de pós-graduação) é caolha.

Atenção! Na era da multi, inter, transdisciplinaridade – ele já existe aí, porteira adentro do seu mundo? – os cientistas carecem de um olhar para além da ciência, ao pensar a academia e a universidade. Do contrário, implodirão o seu templo pouco sincrético, que já repousa sobre um terreno movediço nesses tempos pós-modernos e ultraliberais, bastante interessados em zombar de suas pretensões explicativas e de suas argumentações meritocráticas para serem sustentados pela sociedade. A avaliação a que se submetem, precisa considerar este fato e, além disso, se preocupar com a manutenção de um ambiente organizacional, nas universidades e institutos de pesquisa, em que as relações não produzam necessidades de internação em hospícios, para não contrariar a justa tendência antimanicomial.

*Valdemir Pires é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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