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Federalismo, liberdade e intimidade e a questão do CNJ

Por Celso Mori* | 12/01/2012 13:30

As recentes discussões sobre as competências do CNJ trazem subjacente e não devidamente formulado um debate muito mais profundo. Na realidade, estão em discussão três temas de fundamental importância para a sociedade brasileira, especialmente neste momento em que o país esboça credenciamentos para exercer papeis na liderança mundial.

O primeiro tema é a natureza do nosso regime federativo. Na realidade, somos uma federação sui generis, muito diversa da federação suíça ou mesmo da federação americana. O debate quanto à prioridade da atuação dos estados e o papel subsidiário da União, ou vice versa, não pode estar preso a modelos rígidos, pois não se trata de escolher entre o certo e o errado. Não há, nesse assunto, verdades dogmáticas. Trata-se de construir o modelo que melhor atenda aos interesses da sociedade como um todo. Foi graças à centralização da dívida pública, que o Brasil, ao contrário da Argentina, conseguiu a efetiva administração federal da moeda e o controle da inflação. O drama que a Europa vive hoje talvez se explique pelo hibridismo de uma federação política atropelada por uma confederação econômica.

No Brasil, podem ser citados inúmeros exemplos em que a centralização do poder na União produziu resultados muito positivos e outros tantos em que só concentrou e potencializou os problemas. Nesse aspecto, a Constituição claramente adotou um sistema federativo mitigado, com várias previsões de prevalência do Poder central. Se não há regra geral e absoluta, a interpretação da Constituição, caso a caso, deve estar direcionada pelo critério do interesse público de maior amplitude e reconhecimento, que melhor atenda aos princípios constitucionais de publicidade, impessoalidade e moralidade.

O segundo tema imbricado nessa discussão é o da própria questão da liberdade. A liberdade dos indivíduos, dos grupos sociais ou dos estados a que pertencem. Parece universalmente aceito, por expressiva maioria, que a liberdade absoluta não existe. A liberdade tem limites, uma vez que a liberdade absoluta de todos para tudo significaria o conflito de todos com todos. A vida em sociedade, já explicavam os contratualistas Russeau, Hobbes, Hume e Locke exige a transação entre elementos da liberdade individual e elementos do interesse social. O extremo liberalismo leva ao caos e à anarquia. A prevalência absoluta do interesse social leva aos regimes totalitaristas. Essa discussão, aprofundada e trocada em miúdos, chegaria a uma análise do corporativismo, seja como movimento saudável de defesa das prerrogativas, seja como movimento pernicioso de defesa de privilégios. Mas, essa seria uma discussão com contornos próprios, para ser estruturada em outra ocasião.

Na busca do termo médio entre o individualismo e o totalitarismo exacerbados situa-se a preocupação de preservar o direito individual à intimidade. E esse é o terceiro e talvez o mais importante conflito em discussão, suscitado pelas investigações do CNJ.

No confronto entre dois valores, a intimidade pela qual peleja o indivíduo, e a transparência pela qual clama cada vez mais intensamente a sociedade, cumpre refletir sobre o ponto virtuoso.

Os avanços tecnológicos dos meios de captação de imagens e de sons, a globalização das informações cruzadas, os sistemas de Global Positioning System nos fazem sentir como cidadãos Kanes, vigiados e auscultados sem consciência de como, onde e quando. Não creio que isso seja uma conspiração organizada por um centro de inteligência. Assim é porque na marcha para a liberdade, como Hegel definiu a História, a liberdade de inventar atendeu às demandas do mercado consumidor, ávido por informação e transparência. Será que isso é bom, ou será que isso é ruim?

A intimidade é frequentemente mencionada como direito fundamental condicionante da própria liberdade. Mas, a expressão, como muitas outras, se tornou gasta pelo mau uso e perdeu o seu significado. É bastante fácil a compreensão do que seja a liberdade de ser e a intimidade do ser. O que o homem pensa, o que o homem sente, aquilo em que crê, suas angústias, suas esperanças, seus amores e seus ódios, seus projetos, a causa sui, são elementos indiscutíveis da sua intimidade. Ele os revela se quiser, na extensão e condições que desejar. Não há muitas dúvidas sobre o direito absoluto à intimidade do ser.

Já quanto a intimidade do ter, há mais dúvidas do que certezas. O ter está fora do homem. Portanto, metafisicamente já não é a sua intimidade. Mas, admita-se que o sentimento de ter faça parte da intimidade. Não será, nesse caso, a intimidade absoluta que se estará considerando. O ter é quase sempre ostensivo por natureza. O sentimento dele é intimo. O objeto dele é quase sempre público, muitas vezes registrado em cartório.

Na nossa sociedade de consumo em que se valoriza mais o ter do que o ser, é comum o cidadão querer que todos saibam que ele veste roupa de determinada grife, tem uma bela casa, um belo carro, muitas vezes um barco ou até um avião. Mas, quando alguém pergunta como ele tem tudo isso, invoca-se logo o direito à intimidade e à liberdade de ter.

No mais das vezes, é preciso concordar com isso. Pode ser paradoxal, mas não há lei obrigando ninguém a ser coerente. E se alguém quiser manter sigilo sobre as fórmulas que possa ter encontrado para acumular riqueza, pode-se defender a sua liberdade de fazê-lo, desde que satisfeitas as exigências legais da declaração de imposto de renda, da obrigação de prestar alimentos e umas tantas outras previsões legais.

Mas, no caso de funcionário ou representante público, há alguma diferença. Se o cidadão exerce função ou cargo públicos, o seu direito à intimidade do ser continua intacto, como o de qualquer outro cidadão. Entretanto, a relativização do direito ao sigilo quanto aos seus haveres decorre da sua própria relação com o poder público. O exercício de função pública, abstraídas as limitações morais ou éticas, gera riqueza pelo simples pagamento que o publico faz ao seu servidor ou representante. E pode gerar mais riqueza porque o poder inclui a capacidade de reprimir ou satisfazer desejos que podem ter conteúdo econômico. Pode ampliar ou restringir o ter, devida ou indevidamente. Portanto, a relação econômica do agente público com o Estado não pode ser objeto de sigilo absoluto, porquanto o Estado que paga tem o direito de saber quanto e porque paga. E o Estado tem o direito de saber se as funções estão sendo exercidas dentro de padrões éticos que a sociedade tenha estabelecido como requisito para o cargo.

Recoloca-se a questão: é bom ou é ruim que diferentes órgãos do Estado reúnam cada vez mais informações sobre os teres e os haveres dos cidadãos? A resposta é a de que a tecnologia, a informação, a estatística não são boas nem ruins. São amorais e instrumentais. O que importa é saber quem as maneja e com qual objetivo. Os governos democráticos irão respeitar de forma absoluta os direitos à intimidade do ser e irão relativizar os direitos à intimidade quanto ao ter. Os haveres serão expostos com transparência apenas na medida em que possam se referir a interesses econômicos compartilhados entre quem paga e quem recebe, ou possam se referira a valores institucionais de interesse coletivo.

Já os governos tirânicos ou totalitários irão devassar a intimidade, seja a do ser seja a do ter, apenas como forma de impor uma ordem social que não seja a ordem social efetiva e conscientemente desejada pelo povo.

Em conclusão, não me preocupam nem a tecnologia nem as estatísticas da informação. O que deve captar a nossa consciência, a nossa atenção e nortear a nossa conduta é a ética dos nossos governos.

(*) Celso Mori é advogado

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