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Inconstitucionalissimamente

Por André Rehbein Sathler e Valdemir Pires (*) | 02/06/2017 09:52

Aos que dizem que Diretas Já é inconstitucional, vale lembrar de Santo Agostinho, que ao descrever a podridão de costumes e os desvarios dos governantes na Roma Antiga, disse que “todos estes males se cometeram, todas estas calamidades aconteceram quando na República vigorava um direito justo e bem administrado”.

Ainda sobre Roma, Santo Agostinho destaca que houve momentos em que a “paz rivalizou e até venceu a guerra em crueldade”. A guerra abatia homens armados, a paz, homens desarmados. “Na guerra, o que feria podia ser atingido pelo ferido; mas na paz não se permitia ao sobrevivente que vivesse – antes era obrigado a morrer sem resistência”.

O que segura Temer é a obstinação do mercado com reformas pró-mercado, às quais os cidadãos devem aceder sem resistir, para então morrer em paz. Detalhe: sem se aposentar, porque aí já é pedir demais. O que segura o mercado é a expectativa de que mesmo o pós-Temer será pró-reformas e, portanto, pró-mercado. Alucinação coletiva? Mercados são feitos de expectativas e a sua paz rivaliza e até vence a guerra em crueldade.

Em sua defesa, os mercados se valem de um suposto parentesco com os estados. Tal qual a si, movidos por etérea mão invisível e nascidos do cruzamento entre um fantasma (desejo) e uma fada (realização), os estados não têm alma.

E esse desprovimento faz com que sejam incapazes de julgar a correção ou a incorreção de qualquer coisa que seja. Weber detectou essa propriedade ao conceber sua burocracia, pronta a emprestar seu corpo para ser possuído pelo senhor de plantão (governo).

Esquecem-se, ou fingem esconder com seu suposto esquecimento, que todas as decisões econômicas ou estatais são morais, na medida em que afetam o relacionamento entre as gentes. E decisões morais podem corretamente ser avaliadas em termos de “bem” e “mau”. Mais sábio foi Platão, que intuiu que uma instituição é corruptível justamente por não ter uma alma incorruptível. O véu de cinismo que colocamos entre nós e os nossos homens públicos é tecido com um conjunto de nervos altamente sensíveis.

Esses impulsos nervosos, em uma República, transmitem-se diretamente ao povo. O demos, de onde emana todo o poder, até aceita seu exercício indireto, desde que não se rompa o princípio básico de que em nome do demos não se pode ferir o próprio demos.

Quando se pensa em uma República, fundada em uma Constituição, os cidadãos têm o direito a esperar das autoridades alguma coisa de melhor do que a simples legalidade. Afinal, o governo se tornou importante demais na vida de muita gente para que as práticas corruptas sejam toleradas.

Não adianta vir com essa conversa de inconstitucionalidade. A ela antepõe-se a necessidade de se agir inconstitucionalissimamente em defesa da própria Constituição – afinal, constituir não é co-instituir, organizar junto? Jogo de palavras?

O fato é que enquanto a vida política brasileira tiver sua nascente nas águas turvas do banho conjunto dos primos estado e mercado, um cheiro esquisito empesteará a República.

(*) André Rehbein Sathler é economista, professor do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados; Valdemir Pires é economista, professor do Curso de Administração Pública da Unesp

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