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O impacto da covid-19 na vida de pessoas com disforia de gênero

Fernanda Guadagnin (*) | 18/08/2022 10:16

O Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero (PROTIG) na Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola de Saúde Pública do RS iniciou suas atividades em 1988, após o Conselho Federal de Medicina (CFM) definir as diretrizes iniciais de assistência às pessoas com Disforia de Gênero (DG), que, no Brasil, têm acesso a serviços de saúde pública para tratamento de afirmação de gênero.

A Resolução CFM 2.265/2019 disciplina a atenção integral à saúde do transgênero, incluindo acolhimento, acompanhamento, procedimentos clínicos, cirúrgicos e pós-cirúrgicos. O atendimento é prestado por equipe multiprofissional especializada, composta por profissionais da psiquiatria, endocrinologia, serviço social, psicologia, enfermagem, fonoaudiologia, ginecologia, urologia e mastologia. No PROTIG as atividades assistenciais acontecem através de intervenções educativas individuais e em grupo.

No enfrentamento à pandemia de covid-19, os hospitais passaram a ampliar os atendimentos aos pacientes graves, impactando nos demais atendimentos. Em março de 2020 ocorreu, pela primeira vez, desde 1998, a suspensão do acompanhamento e das cirurgias no PROTIG.

Para averiguar o impacto dessa interrupção, foi realizado um estudo com 48 indivíduos, que receberam, pelo Whatsapp, um questionário semiestruturado com 25 questões quantitativas e qualitativas. A coleta de dados, realizada no início da pandemia e um ano após, abrangeu os seguintes aspectos: dados demográficos e socioeconômicos; tratamento hormonal; auxílio emergencial; depressão; ansiedade e irritabilidade; relação familiar; acesso a serviços de saúde; diagnóstico de covid-19.

A partir das respostas, pôde-se averiguar que o cenário de pandemia afetou não apenas o cotidiano, mas também as condições sociais, econômicas e de saúde da população com disforia de gênero.

Durante o primeiro período da pandemia, o isolamento social foi fortemente recomendado para controlar a disseminação da covid-19. No entanto, essa importante medida preventiva de saúde provocou a redução do emprego formal e informal em todo o mundo, com muitos indivíduos impossibilitados de trabalhar devido às incertezas da emergência sanitária. No Brasil, foi ofertado o Auxílio Emergencial (Lei n.º 13.982/2020), benefício que afetou positivamente os indivíduos mais vulneráveis, como os pacientes do PROTIG. Não foi sem surpresa que nos deparamos com a seguinte constatação: muitos pacientes obtiveram uma renda mensal maior durante a pandemia em comparação com a renda mensal anterior devido ao acesso ao benefício.

As condições de vida dos pacientes com DG são extremamente estressantes: além das condições diretamente associadas ao estigma e preconceito, eles vivem, via de regra, em condições econômicas precárias.

As consequências da pandemia – incluindo o isolamento, a interrupção temporária da atividade ocupacional e a suspensão da assistência pelo PROTIG – provocaram uma perda temporária de autoestima. Constatou-se a retração do senso de pertencimento a um grupo social, a diminuição da esperança de alcançar a cirurgia de afirmação de gênero e a redução da capacidade de enfrentar seus próprios problemas.

Muitos pacientes costumavam reclamar da legislação que os obriga a um mínimo de dois anos de atendimento, antes da indicação à cirurgia. A suspensão temporária das ações do Programa, provocada pela covid-19, evidenciou que a importância do trabalho do PROTIG para os pacientes é maior do que erroneamente se considerava antes da pandemia.

Felizmente, a covid-19 não contagiou de forma significativa os integrantes da nossa amostra. Inicialmente, dois casos positivos foram relatados, e nenhuma morte, mas com o tempo a doença atingiu amigos e familiares. Os pacientes, por outro lado, reafirmaram o sentimento de rejeição internalizado, o constrangimento enfrentado e a dificuldade real de acesso aos serviços de saúde em decorrência da condição de pessoa com DG.

Na população em estudo, identificou-se que a pandemia impactou de forma significativa os sujeitos participantes, sendo intensificadas as manifestações de sintomas depressivos pela necessidade de acionar o auxílio emergencial e pela dificuldade de acesso a serviços de saúde. Além disso, os resultados revelaram um impacto positivo no que tange às relações familiares. Dentre os dados qualitativos coletados, destacou-se a manifestação de muitos pacientes da vontade de retomada dos atendimentos com a equipe do PROTIG.

A vivência da população em geral na pandemia fez com que se conferisse maior relevância às questões associadas à preservação da vida, contribuindo para tornar secundárias as avaliações equivocadas sobre as questões da sexualidade. O momento de fragilidade coletiva em relação ao enfrentamento desse cenário pandêmico parece ter contribuído para que as pessoas passassem a cuidar emocionalmente e socialmente umas das outras.

Guardadas as condições supracitadas da pandemia, a pesquisa também contribuiu para revelar a importância do atendimento público e gratuito prestado pelo PROTIG para essa população específica, além de demonstrar significativo grau de motivação das pessoas com DG pela retomada do acompanhamento multidisciplinar, inclusive com emprego de tecnologias online, como telefone e videochamada.

(*) Fernanda Guadagnin é assistente social do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS e membro da equipe do Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero na Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola de Saúde Pública do RS.

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