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Os engraxates da Afonso Pena

Por Heitor Freire* | 15/12/2011 13:30

Quando voltei para a nossa Campo Grande, em agosto de 1970, para implantar a estrutura de vendas de uma empresa que aplicava recursos no mercado de ações, senti-me deslocado inicialmente. Isto porque, em São Paulo, eu trabalhava sempre de terno e quando saía de casa pegando a minha pasta, já sentia no gogó o laço da gravata – o que me dava segurança.

Mas logo que cheguei senti que uso do terno causava certa resistência pelo seu aspecto formal e fui, gradativamente, deixando de lado essa vestimenta. Ainda assim, quando pegava a pasta sentia falta do aperto do nó da gravata. Mas mantive o hábito de engraxar os sapatos regularmente. Logo que cheguei fui procurando um local onde poderia engraxar os meus sapatos.

Na Afonso Pena, na altura do cine Alhambra, do outro lado da avenida, encontrei dois engraxates, meninos ainda e que trabalhavam com muita competência. Os sapatos saíam bem lustrados, brilhantes mesmo. Eram o Valdeci – que tinha o apelido de Gato, e o Antenor Montenegro que lá está até hoje. Isso em 1970. Em 1975, chegou o Mota e em 1980, o Elias, completando assim o trio que compõe o time que está junto até hoje.

Eles formaram uma verdadeira confraria, pois sempre foram unidos e solidários. Depois de certo tempo o Valdeci mudou de profissão saindo então do pedaço. Logo depois veio a falecer. E aí se confirma a confraria. Os três unidos assumiram a manutenção do único filho do Valdeci e de sua viúva, e responderam por esse compromisso por muito tempo.

Ao longo dos anos esses rapazes acompanharam toda a transformação que ocorreu nesse local: inicialmente na frente da calçada onde trabalhavam, funcionava a oficina da concessionária da Willys Overland, de propriedade do Ibrahim Kalil Zaher, genro do Naim Dibo. Hoje é a loja das Casas Bahia. Um comentário à margem: numa eleição o Ibrahim foi candidato a vereador, isto na época da revolução, e ao fazer um pronunciamento na televisão no horário gratuito, levantando o dedo indicador, ele disse: “Eu não sou dedo duro. Nem dedo mole. Depois eu explico”. Só que nunca mais tratou do assunto.

Outro candidato folclórico daquela época era o Coronel Bergo. Ele dizia nos seus pronunciamentos na televisão: “Eu não tenho rabo”. E virava a traseira para a câmera e passava a mão de um lado para outro para enfatizar o que dizia. O nosso Antenor também foi candidato a vereador em 1982. Nenhum deles foi eleito.

Ao lado do ponto dos engraxates ficava a Churrascaria Gaúcha do José Ramão Cantero, que marcou época com a famosa ponta de costela e com os conjuntos paraguaios que ali se apresentavam dando um colorido todo especial à noite campo-grandense. Ao encerramento da sessão de cinema no Alhambra, todas as noites o Tarcísio Dal Farra, diretor da Empresa Teatral Pedutti, dona do cinema, tinha ali mesa cativa, onde tomava a sua cerveja e fumava o seu cigarro. O Tarcísio era casado com a Nelly Hugueney e eles são os pais dos meus amigos Denise e Ricardo Dal Farra. Do mesmo lado havia a Churrascaria do Vitório, com as mesmas características. Este logo contratou um relações públicas que ficava na calçada convidando os transeuntes para dar preferência à sua churrascaria.

Os engraxates que mencionei tinham clientes ilustres: o dr. Marcílio de Oliveira Lima – ex-prefeito de Campo Grande –; o dr. Wilson Barbosa Martins –ex-prefeito, ex-deputado federal, ex-senador e ex-governador do nosso estado; o dr. José Fragelli – ex-governador do Mato Grosso ainda uno, ex-senador, que, como presidente do Congresso Nacional, sentou-se também, em substituição legal, na cadeira do presidente da república; o dr. Odilon de Oliveira, juiz de direito federal. Uma vez o João Saldanha, passando pela nossa cidade ali engraxou seus sapatos. Outra vez engraxaram o sapato para um defunto. Naquela época, chegava-se a esse requinte. Havia até um ditado que dizia o seguinte: “Se faz de defunto para ganhar sapato novo”.

Valdeci, Antenor, Mota e Elias – anônimos para muitos, mas personagens interessantes que habitam a minha memória. Criaram suas famílias com o seu trabalho: Antenor é pai de sete filhos, avô de dez netos e bisavô de uma bisneta. O Mota é pai de três filhos e avô de três netos. O Elias tem quatro filhos.

(*) Heitor Freire é corretor de imóveis e advogado

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