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Pessoas com deficiência e o impedimento de partilhar experiências

Jéferson Alves (*) | 10/04/2021 13:16

As pessoas vivem cotidianos muito diversos, experienciando os espaços e as relações de maneiras muito particulares. Ainda assim, podemos compartilhar algumas dessas experiências, seja pelo diálogo, por olhares, por toques ou por distanciamentos sociais. As Pessoas com Deficiência (PCD) experienciam também esses mesmos espaços e relações, mas de formas tão complexas que, muitas vezes, não é possível compartilhar.

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul é composta de alguns câmpus, dentre eles o Câmpus do Vale – distante do centro da cidade de Porto Alegre e praticamente na entrada de Viamão. É um campus enorme, com muita área verde, com uma grande extensão, vários prédios, dois Restaurantes Universitários (RUs) e… quase nenhuma acessibilidade.

Ingressei no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social em 2018. De lá pra cá, as experiências de inacessibilidade pelas quais passei no câmpus só puderam ser compartilhadas, no sentido mais subjetivo, com as PCDs que foram interlocutoras da minha pesquisa de mestrado.

Tive experiências nas quais amigos e colegas estavam presentes, abrindo portas, levando a cadeira degraus acima, puxando-a por ruas esburacadas ou, ainda, parando em frente a um degrau que separava a cadeira de um elevador, me obrigando a descer para subir o degrau e depois voltar a sentar – não sou cadeirante, mas os espaços da UFRGS me obrigaram a começar a utilizar a cadeira de rodas por serem inacessíveis para a minha deficiência: não consigo me deslocar, caminhando, médias e longas distâncias.

Apesar disso tudo, esses amigos não deficientes não conseguem experienciar essas inacessibilidades da mesma maneira que eu, uma PCD. E essas são cotidianidades que me (re)produzem emoções que, muitas vezes, tenho de guardar para mim – pelo simples fato de que é difícil, ou até impossível, comunicá-las a não PCDs.

Meus interlocutores sabiam bem do que eu falava quando dialogávamos sobre os espaços do Câmpus do Vale. Nossas experiências se comunicavam, subjetiva e objetivamente, porque a inacessibilidade nos afetava de maneiras muito semelhantes. “Não, cara, as rampas são bizarras!”, me disse um deles – e elas são mesmo: quando comecei no primeiro semestre em 2018, eu tinha de empurrar minha cadeira de rodas rampa acima para só depois sentar nela! Imagina isso. É como se você fosse obrigado, para chegar numa sala de aula, a se arrastar rampa acima, sendo proibido de usar as pernas, e só depois, lá em cima, pudesse voltar a usá-las para chegar à sala. Bizarro!

No entanto, essas experiências se repetem de diversas maneiras: é o RU “de baixo” do câmpus fechado (o mais próximo do prédio das minhas aulas e dos meus interlocutores) – mesmo que quase impossível de ser acessado sozinho, por se isolado por uma enorme rampa íngreme ou uma escadaria –, é estacionamento distante dos prédios de aula (estes sem elevadores), banheiros apenas no segundo andar, biblioteca no fim de corredores gigantes, pisos táteis que terminam em canteiros com árvores. É uma experiência mais complexa do que a outra. O cotidiano das PCDs, como disse no início do texto, é muito particular. E, por isso mesmo, é muito difícil de ser compartilhado como experiência.

Saber que o outro tem uma empatia por compreender o impedimento, mas que não é por já ter vivido esse aperto, esse apuro, é o que dificulta o compartilhamento dessas angústias. E isso, em um ambiente universitário, é bastante delicado. Sabe-se, por diversas pesquisas já realizadas, que a universidade é, por si só, um ambiente estressante. Experienciar esse espaço sem poder compartilhar angústias, medos, vivências, é ainda pior. A PCD, assim, se vê muitas vezes isolada emocionalmente. Suas experiências são retidas, não ditas, porque o que mais se ouve são os “bah, é foda mesmo, né?”, ou o clássico “tem que rir pra não chorar”. Sim, temos de rir, mas não para não chorar! Temos de rir quando a situação for engraçada, não problemática e impeditiva.

A sensação de impotência também é presente na vida das PCDs. Posso dizer com conhecimento de causa: ainda estou preso a burocracias e prédios inacessíveis e não posso fazer muito quanto a isso. A minha presença nesses espaços, assim como a de todas as PCDs, é muito importante para que eles mudem. Mas o sentimento de que, mesmo que muito se faça, pouco vai ser mudado é grande. E são poucas as PCDs na universidade com quem posso compartilhar essas angústias – as PCDs matriculadas no ensino superior, na graduação, não passa de 1% do total de pessoas matriculadas. Eu, por exemplo, durante o mestrado, numa turma de 20 ou 30 pessoas, era a única PCD com cadeira de rodas. Com quem falar sobre isso, então?

O que este texto se propõe é demonstrar o quanto é dificultada a permanência das PCDs nos espaços universitários. E um dos principais impeditivos causados pelas inacessibilidades diversas é a dificuldade de se compartilharem experiências, sejam elas emotivas ou não. A universidade é um local de trocas, de coparticipação, de encontros, de socialidade. E às PCDs isso é, em grande parte, negado. Me preocupa que esses espaços, pretensamente democráticos e inclusivos, possam estar prejudicando uma vida de qualidade desses estudantes. Espero que não, embora os indícios, as minhas experiências e as de meus interlocutores me digam que sim.

Com toda essa adversidade, no entanto, as PCDs ainda estão lá, estudando, criando estratégias para (sobre)viver nos espaços, construindo suas relações com muita técnica e criatividade e exigindo mudanças, tanto verbalizando quanto com a presença de seus corpos. Não desistirei da universidade e acredito que as PCDs que nela estão também a encaram com essa pretensão de permanência. Confio, contudo, que há um objetivo comum: não desistirmos, mas termos consciência de que o espaço nos impede de uma experiência sem restrições – e isso deve mudar.


(*) Jéferson Alves é doutorando em Antropologia Social e participa do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS).

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