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Recuperação judicial do produtor rural: riscos e fatores de 'sucesso'

Por Sergio Schmidt (*) | 29/02/2024 13:30

Recente levantamento da empresa Serasa Experian, amplamente noticiado nos principais veículos de comunicação do país, indicou um grande aumento no número de recuperações judiciais, especialmente de produtores rurais.

Fatores climáticos, alta volatilidade dos custos de produção e baixa nas cotações de preço das principais commodities agrícolas, somado a elevação nas taxas de juros no Brasil pós pandemia são as principais justificativas econômicas apresentadas.

A recuperação judicial, prevista na Lei 11.101/2005, teve seu auge no ano de 2016, em resposta à crise econômica ocorrida nos anos anteriores.

Nesse período, além de inúmeras empresas, também vários agricultores buscaram essa medida de proteção judicial, embora houvesse imensa controvérsia sobre a própria possibilidade do produtor rural pessoa física recorrer a ela.

Ultrapassada esta questão por meio de reiteradas decisões nos tribunais superiores e pela inclusão da opção do produtor rural pessoa física requerer sua recuperação judicial na legislação vigente, os desafios atuais são de outra natureza.

A evolução da legislação, com a implementação de prazos mais rígidos, a exclusão de diversas modalidades contratuais das dívidas sujeitas a recuperação judicial, bem como o aprimoramento da própria estrutura do judiciário para conferir maior celeridade e efetividade aos processos de reestruturação, acabaram por tornar a recuperação judicial de hoje substancialmente diferente daquela do passado.

Podemos afirmar que os desafios hoje enfrentados pelos produtores rurais que buscam a recuperação judicial como ferramenta para reorganizar seu negócio são inclusive maiores do que aqueles enfrentados pelos agricultores nos anos de 2015/2016.

Tal situação nos indica, que o “sucesso” alcançado nas reestruturações daquela época, pode inclusive não se repetir em relação aos produtores rurais que recorrerem a referida solução jurídica na atualidade.

Alguns dos fatores que levaram ao “sucesso” das recuperações judiciais de produtores rurais nos anos de 2015 a 2017 - Muito embora várias pessoas possam não concordar, vou listar a seguir dois grandes fatores que, a meu entendimento, foram decisivos para o “sucesso” das recuperações requeridas pelos produtores rurais nos anos de 2015, 2016 e 2017.

Morosidade processual - diante da falta de estrutura nas comarcas do interior do país para enfrentar os complexos processos de reestruturação empresarial e da falta de estipulação de prazos rígidos na legislação vigente a época, diversos processos de recuperação judicial acabaram demorando vários anos até que fosse definido o seu desfecho, via realização da Assembleia Geral de Credores.

Neste período, na maioria das situações, houve prorrogação do prazo de proteção “stay period”, com impedimento ao prosseguimento de execuções e expropriação de bens, além da ausência de qualquer pagamento e incidência de juros em relação as dívidas sujeitas aos efeitos da recuperação judicial.

Há casos de recuperações judiciais de produtores rurais cujas dívidas ficaram “congeladas”, por quase cinco anos, o que acabou contribuindo muito para o restabelecimento do fluxo de caixa.

Efeito surpresa -  considerando a pouca quantidade de pedidos de recuperação judicial realizados no período anterior a crise de 2014/2015, bem como a inexistência de legislação prevendo (de forma expressa) a possibilidade de recuperação judicial do produtor rural pessoa física, a maioria das dívidas junto aos bancos eram garantidas somente por avais familiares ou, no máximo, penhor e hipoteca.

Essa situação acabou por colocar todos os credores (bancos e fornecedores), sob os efeitos das recuperações judiciais requeridas pelos produtores rurais a época.

Naquele período, a principal modalidade contratual excluída da recuperação judicial era a alienação fiduciária, cuja utilização pelos agentes financeiros estava restrita basicamente a garantia em operações de financiamento de veículos e máquinas.

Tais circunstâncias, no entanto, já não podem mais ser encontradas nos atuais processos de recuperação judicial, devido a evolução do tema tanto no âmbito jurídico, quanto financeiro.

Riscos em relação aos atuais pedidos de RJ por parte dos produtores rurais - Embora atualmente esteja clara a possibilidade dos produtores rurais requererem a recuperação judicial na qualidade de pessoas físicas, temos que, diferente do que ocorria no passado, existem hoje inúmeros outros fatores de risco que necessitam ser avaliados de forma detalhada e incisiva por parte dos agricultores que consideram optar pela referida proteção judicial:

Prazo determinado para convocação da assembleia geral de credores - diferente do que ocorria antes da alteração na Lei, a assembleia geral de credores agora deverá ocorrer no prazo de 150 dias. Como penalidade o legislador previu que em caso de não haver instalação da assembleia para deliberar sobre o plano de recuperação apresentado pelo produtor rural no prazo de até 360 dias (“stay period”), os credores poderão apresentar um plano alternativo e levá-lo a votação.

Exclusão dos contratos com cláusula de alienação fiduciária: Hoje a maioria dos contratos de financiamento e empréstimos concedidos pelos bancos possuem cláusula de alienação fiduciária de algum bem ou cessão fiduciária de recebíveis, o que os torna excluídos dos efeitos da recuperação judicial. Ou seja, as instituições financeiras hoje estão bem mais preparadas, sob ponto de vista de garantia, contra as crises financeiras de seus clientes.

Exclusão dos contratos de CPR Física - visando a dar proteção as operações de barter (troca de insumos por produtos), atualmente os contratos de CPR com liquidação física (entrega de grãos) também não estão mais sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, o que possibilita aos detentores de tais créditos arrestarem grãos suficientes para liquidação destas obrigações.

Grãos destinados a comercialização também não tem sido considerados bens essenciais a manutenção da atividade econômica do agricultor pelo Judiciário, o que, em tese, poderia garantir alguma proteção em relação a tais ativos.

Exclusão dos atos cooperativos - outra novidade trazida pela alteração legislativa foi a exclusão das dívidas junto as cooperativas, atos cooperativos, dos processos de recuperação judicial. Embora persistam divergências no âmbito jurídico quanto a sujeição das dívidas contraídas junto a cooperativas de crédito aos efeitos da recuperação judicial, resta evidente que, a depender do caso, este também é um aspecto que merece atenção especial.

Exclusão das dívidas não relacionadas a atividade agropecuária: considerando que a recuperação judicial destina-se a reestruturar a atividade econômica do produtor rural, é importante ressaltar que as dívidas não vinculadas a tais negócios também não estão sujeitas a seus efeitos. Nesse sentido, o produtor rural também poderá ter que vir a comprovar que as dívidas listadas na recuperação judicial estão efetivamente associadas a atividade agropecuária por ele desenvolvida.

Maior fiscalização das atividades da recuperanda pelo administrador judicial e credores - outro ponto de extrema relevância refere-se à maior fiscalização implementada atualmente pelos administradores judiciais (auxiliares do Juiz) e dos próprios credores em relação as atividades desenvolvidas pelas empresas em recuperação judicial, especialmente registros contábeis.

Todos sabemos que, em sua grande maioria, os produtores rurais não possuem processos de controle aprimorados, o que também poderá ser um problema. Muito embora a gestão do negócio continue sendo do produtor rural, uma vez requerida a recuperação judicial, este passa a ter que prestar, regularmente, contas detalhadas de suas operações.

Possibilidade dos credores optarem pela falência - Embora não seja situação frequente no meio empresarial devido ao alto volume de dívidas tributárias que a maioria das empresas em crise possui (créditos preferenciais), no caso dos produtores rurais, a possibilidade dos credores não aprovarem o plano de recuperação judicial proposto e optarem por receber seus créditos em um processo de falência pode ser substancial, especialmente em relação àqueles que possuem ativos patrimoniais de valor elevado.

Neste caso, havendo a convolação da recuperação judicial em falência, todo os bens do produtor rural serão vendidos em leilão e o valor arrecadado será utilizado para o pagamento dos credores.

Diante de todas a considerações apresentadas, é primordial concluir que os produtores rurais que se encontrem em meio a uma situação de crise devem, acima de tudo, realizar uma avaliação criteriosa e detalhada para determinar se a recuperação judicial é, efetivamente, a melhor alternativa para a sua situação específica.

É fundamental destacar ainda que, além da recuperação judicial, o produtor rural deve evitar, ao máximo, decisões precipitadas. É crucial que ele, antes de tomar qualquer medida, examine minuciosamente todas as alternativas disponíveis, tanto no contexto judicial quanto extrajudicial, a fim de garantir a reestruturação eficaz do seu negócio.

(*) Sergio Schmidt é advogado com atuação em Direito Empresarial, mediador e administrador judicial.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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