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Viver stricto em magistério árduo: uma reflexão sobre o burnout

Paola Zordan (*) | 11/08/2022 13:30

Árduo Chamas ardentes Trinas 

Dum audes ardua vinces:  foi preciso pintar em grandes letras o lema para o tornar excessivamente visível nas paredes daquele gabinete. Cubículo onde um corpo acadêmico, numa vida magisterial, despende seus dias.

Encontrada em compêndios barrocos que ilustram máximas morais, a frase em latim pode ser traduzida de modo tosco como “com audácia o árduo vences”. Audácia, originalmente, está mais próxima da virtude clássica que hoje conhecemos como CORAGEM. O árduo, o que arde, o que queima, pode ser entendido como dificuldade, vencer o que arde seria atravessar um campo de batalha. A tradução elegante seria “com coragem se vencem as dificuldades”.

Dedicação exclusiva sem hora para acabar, sem dia de semana para contar, com todas férias para trabalhar. Fim do sono. Vinte quatro horas por dia, sete dias por semana.

Stricto. 

streitar para ampliar 

Perspectivas várias.

Quantos são os momentos em que é preciso, novamente, explicar, no raro caso de que alguém queira ouvir o que se faz numa Universidade, o que é atuar na pós-graduação stricto senso?  Há uma ignorância geral, muitas vezes dentro da própria instituição, do que vem a ser essa instância de trabalho efetivamente árduo.

Há quem imagine que, como nas universidades privadas, cujo trabalho se calcula em valor de horas-aula, a atuação em pós-graduação tenha recompensas financeiras. Isso somente acontece se houver contemplação de uma concorrida bolsa, cuja lógica de distribuição por áreas de conhecimento, territórios e regiões, prejudica instituições como a UFRGS – e, mais ainda, programas que agregam campos de saberes diversos.

Especialmente quando se trata de um intelectual efetivamente transdisciplinar, bolsas de produtividade em pesquisa, obtidas em agências de fomento, se tornam impossíveis. Submeter-se constantemente a editais e receber avaliações todos os anos é como entrar num tribunal de inquisição por conta própria, pois quem não se enquadra em um conhecimento realmente “estrito”, respondendo a determinados discursos, será “queimado”.

Ardem-se ardidos

Na divisão de encargos departamentais, a mitigação da carga horária, na maior parte dos casos quando não há valor-hora, também arde na vida de quem atua em programas de pós-graduação.  Oferecer disciplinas especializadas que envolvem projetos de pesquisa e uma enorme carga de leituras, inconcebíveis para um plano de aula de disciplinas na graduação, raramente é considerado.

A orientação de mestrados e doutorados, cujo cômputo na carga horária é o mesmo de estudantes de graduação, não se compara. Não há garantias de que esse acúmulo seja atenuado. “Dane-se”, foi dito pelas costas daquele docente que reclamou. As hostilidades e descasos com esse tipo de trabalho ardem.

Quem se agarra a uma estaca 

Ponto de vista absoluto Madeira dura 

Negada a combustões 

Acha o que em nós rutila 

Ameaça

Dum audes ardua vinces: vencerás as dificuldades com audácia e coragem. Tais palavras, que ressoam de certo modo militares, foram destacadas junto a um texto de Oscar Wilde, dândi condenado que sofreu o pior castigo que uma pessoa apaixonada pelo conhecimento pode receber: ter sua biblioteca espoliada e dizimada por seus algozes. Nas artes e nas ciências ditas “humanas”, sem uma biblioteca, a pesquisa se torna impossível.

A biblioteca de quem pesquisa se torna um projeto de vida.  Passa-se, em poucas horas,  por quatro idiomas diferentes. Quinhentas páginas por dia, nunca só um autor. Muitos horizontes. Danado é quem, por gosto, aceita ser acalentado pelas tochas nos complexos corredores de um labirinto projetado para que poucos se achem. A proficiência é adquirida audaciosamente, desbravando n caminhos desconhecidos.

Ser odiado por professar conhecimento implica aceitar que não há alento, apenas perseguições. Para viver no meio dos livros é preciso assumir o risco de rejeições sociais e escárnios vários. Ter a audácia de sentir o quanto se é desvalorizado a ponto de ser arrastado a abrasivas destruições. Virar doutor não é apenas adquirir um título, ainda que para muitos seja apenas isso o que vale. Uma vida doutoral se torna um fado quando o doutor efetivamente se ocupa do magistério stricto senso.

Querer nem sempre é o suficiente para que se suporte

Precisar de um antigo provérbio latino para atravessar as dificuldades de mais um dia no monastério singular semidoméstico de quem tem compromissos com a produção de conhecimentos nesse tipo de sistema avaliado quadrienalmente, com pontuações de produção exigidas em relatórios,  aponta ao burnout, o arder para fora que sintomatiza a sobrecarga contemporânea.

Queimam-se queimados 

Dum audes ardua vinces. Todo dia é dia de cruzar fogo. Querem eliminar o valor dos pesquisadores a todo custo, e não se deixar abater é ter coragem para se eximir de ócios e da vida social branda. Amigos são perdidos quando todo tempo na vida é tomado para que a almejada excelência magisterial seja alcançada.

Vencer o mínimo entre casa para cuidar, aulas e mais aulas, imersão no material de pesquisa, preparo de aulas, providências quanto a formulários, relatórios, o dobro das reuniões habituais, estudos, atendimento a estudantes, orientações, envio de referências, tarefas administrativas, solicitações incertas quanto a se obter fomentos. Perde-se.

Arde-se. Queima-se. 

Por outro lado, é preciso manter a chama acesa, o fogo do conhecimento ardendo. Há lacunas, ausências e desencontros. Há mil rostos e vontades na questão. Compromisso que não pode acolher abatimentos. Há compaixão, essa paixão com. Um padecer com estudantes, um se apaixonar por autores, paixões temáticas, passar com os problemas sociais e filosóficos que tomam a vida. Para manter essa pira flamejando, porém, há tarefas que nem sempre se referem ao deleite do conhecimento, em seu estrito fruir, mas a toda uma bateria de trabalho administrativo, extra, a ser carregada.  Os prazos findam, o tempo chega, e não há negociação.

Ímpia pós-graduação stricto senso que açoita ao acalentar 

Seria um poema, se as inflexões das palavras pudessem dançar em aberto, preferencialmente ao som do “óleo da meia-noite”, que impede o sono de quem pensa. Como dormir com as camas ardendo em chamas?

Fulguração crônica, vistas as atividades do corpo, quase sempre sentado ao imiscuir-se nas muitas palavras e nos dados que o compõem,  se repetirem  infinitivamente, ainda que nunca do mesmo modo. Aquilo que aquece também pode aniquilar.

Três chamas 

Se fazem muitas 

Fogaréu imenso 

Múltiplas labaredas

Incontáveis

(*) Paola Zordan é professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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