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Capital

Decisão de conselho impede HU de fazer abortos em casos de estupro

Resolução do CFM proíbe aborto em gestações acima de 22 semanas, mas decisão gera debate entre entidades

Por Mylena Fraiha | 15/04/2024 06:49
Entrada do Hospital Universitário, na Avenida Senador Filinto Muller, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Entrada do Hospital Universitário, na Avenida Senador Filinto Muller, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)

Cercado de polêmicas, o aborto legal voltou à discussão após o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicar a Resolução 2.378/2024, que proíbe os médicos de realizarem procedimentos que resultem na morte do feto em casos de interrupção de gestação acima de 22 semanas. Essa proibição se aplica especificamente aos casos de gravidez resultantes de estupros.

Atualmente, o aborto legal é garantido em três situações: quando a gravidez é resultado de estupro, quando há risco de vida para a mãe e em casos de anencefalia do feto. Essas situações estão respaldadas pelo Código Penal Brasileiro e por decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).

Em Mato Grosso do Sul, o único hospital autorizado a realizar o procedimento é o HU (Hospital Universitário). Atualmente, a equipe é composta pelo médico ginecologista e obstetra Ricardo Gomes e pela assistente social Patrícia Ferreira da Silva.

Segundo dados divulgados pela assessoria do hospital, no ano passado, o Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual atendeu 49 pacientes, incluindo mulheres adultas, adolescentes e meninas. Dessas, 41 interromperam a gravidez.

Em relação aos casos de aborto legal, a maioria foi ocasionada por abusos sexuais. Foram 37 casos de gravidez resultante de abuso nos quais as pacientes optaram pela interrupção da gestação, sendo 36 em 2023 e 1 em 2024, cujo atendimento inicial ocorreu em dezembro de 2023.

Apesar de procurarem atendimento, oito casos não prosseguiram com o aborto. O levantamento mostra que dois desses casos não apresentaram critérios para interrupção legal. Em outros seis casos, as pacientes optaram por manter a gestação, mesmo tendo sido ocasionadas por estupros.

É importante mencionar que o sofrimento é visível. A decisão de fazer um aborto legal é difícil, independentemente de ser por risco, anencefalia ou violência sexual. Então, é preciso ter paciência para ouvir essas pessoas, que muitas vezes podem estar fragilizadas. É importante ressaltar que é uma escolha delas. O nosso serviço é apoiar e acolher, não determinar", comenta Patrícia da Silva.

Pessoas caminham pelos corredores do Hospital Universitário, em Campo Grande, único hospital de MS que realiza o aborto legal (Foto: Paulo Francis) 
Pessoas caminham pelos corredores do Hospital Universitário, em Campo Grande, único hospital de MS que realiza o aborto legal (Foto: Paulo Francis)

Violência sexual - As gestações resultantes de violência sexual são as mais comuns quando se trata de buscar o aborto legal, conforme indicado pela equipe do Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual do HU.

É relevante destacar que, de acordo com os dados registrados nos boletins de ocorrência da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), em 2023 foram contabilizados 2.424 casos de estupro em Mato Grosso do Sul. Entre janeiro e as duas primeiras semanas de abril de 2024, foram registrados 479 casos de estupro no Estado.

Diante dessa realidade, a lei garante o direito ao aborto legal e um atendimento médico digno, mesmo sem a necessidade de provas criminais. "Nesses casos, não é necessário um boletim de ocorrência. É importante mencionar isso porque muitas pessoas pensam que é necessário, inclusive profissionais da saúde. O que é necessário é o ultrassom, pois podemos verificar se a idade gestacional corresponde ao período em que ocorreu o abuso", explica Ricardo.

Ricardo explica que a maioria dos casos chega com a gestação abaixo de 20 semanas (Foto: Mylena Fraiha)
Ricardo explica que a maioria dos casos chega com a gestação abaixo de 20 semanas (Foto: Mylena Fraiha)

Segundo o médico, a maioria dos casos chega com a gestação abaixo de 20 semanas. No entanto, ele explica que algumas mulheres chegam tarde por diversos motivos. "Nós perguntamos para entender. Algumas explicam que não sabiam desse direito, outras achavam que precisavam provar o caso de abuso. Houve um caso em que a paciente disse que tentou levar a gravidez adiante, mas toda vez que prosseguia com o pré-natal, era um sofrimento".

Apesar de não haver um perfil socioeconômico, idade ou escolaridade definidos, a equipe explica que muitas das mulheres que procuram o serviço são adolescentes que foram vítimas de estupro. Nestes casos, a gravidez muitas vezes é descoberta após as 22 semanas, devido ao medo de retaliação por parte dos familiares.

"Isso acontece principalmente com adolescentes e meninas, com idades entre 12 e 14 anos. Geralmente, elas sofrem abusos dentro de casa. Há também a questão do silêncio, do medo de que todos descubram, e o próprio agressor as ameaça de alguma forma. Com isso, elas acabam descobrindo muito tarde a gravidez", comenta Ricardo.

Em discussão - O aborto legal, termo usado pela medicina, é o procedimento de interrupção de gestação autorizado pela legislação brasileira e que deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

No entanto, não há um consenso nacional sobre a realização de interrupções de gestação após as 22 semanas. Recentemente, isso ficou em evidência com a proibição estabelecida pela resolução do CFM, publicada em 3 de abril deste ano. A resolução se fundamenta na possibilidade de o feto ter condições de vida fora do útero após 22 semanas de gestação.

"É vedada ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”, destaca o documento do CFM.

Por meio dessa normativa, o CFM veda aos seus profissionais a realização do procedimento da assistolia fetal para feto acima de 22 semanas, ato médico fundamental para a prática digna do aborto legal.

Isso significa que os médicos que utilizarem a técnica poderão ser punidos por infração ética e ter seus registros cassados, suspensos, ou ainda, sofrer advertências verbais ou escritas.

Qualquer médico que atender uma paciente vítima de violência sexual e realizar o procedimento de aborto após as 20 semanas não está violando a lei. Ele não pode ser enquadrado no código penal, mas pode ser responsabilizado pelo CFM e perder o seu registro profissional", explica Ricardo.

Conforme explica Patrícia, com essa decisão, mulheres que foram vítimas de estupros e, consequentemente, ficaram grávidas, serão as afetadas, especialmente se elas procurarem o atendimento tardiamente.

Entretanto, para evitar punições, o Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual do HU irá seguir a recomendação do CFM, até que haja alguma decisão contrária. “O nosso papel enquanto serviço é seguir as leis e as determinações. Não é uma questão de opinião. É um direito da mulher. Só que ele [Ricardo] precisa se preservar. Então, hoje nós iremos seguir a orientação dada pelo CFM, de realizar o procedimento até 22 semanas. Só que acreditamos que esse limite irá prejudicar as mulheres e adolescente”, comenta Patrícia.

Em discussão - Na nota técnica emitida em 5 de abril, as Defensorias Públicas apontam que a resolução do CFM apresenta "óbice ilegal à efetivação do aborto legal em caso de estupro, configurando violação aos direitos humanos de mulheres e meninas no país, tais como o direito à saúde, o direito ao planejamento familiar e os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas".

Segundo o documento, a resolução excede o poder regulamentar dos conselhos profissionais e desrespeita a legislação vigente. "O exercício desse poder regulamentar não é irrestrito e encontra limites, no Estado de Direito, nas leis e na Constituição de 1988", aponta o documento.

Outra contradição apontada pelas Defensorias Públicas diz respeito ao que é previsto no Código de Ética Médica, segundo o qual o profissional não pode deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde cientificamente reconhecidos e a seu alcance. A indução de assistolia fetal é uma técnica científica segura recomendada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e pelo Ministério da Saúde para a realização do aborto.

A Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio do Nudem (Núcleo Institucional de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher), também assinou o documento.

Além disso, o MPF (Ministério Público Federal), em conjunto com a SBB (Sociedade Brasileira de Bioética) e o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde), ajuizou na última segunda-feira (8) uma ação civil pública contra a Resolução 2.378/2024 do CFM, que estipula uma nova restrição à realização do aborto legal para vítimas de estupro. O documento pode ser acessado por meio deste link.

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