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Casa onde poeta escreveu nos últimos 30 anos vai virar Museu Manoel de Barros

Artes

Casa onde poeta escreveu nos últimos 30 anos vai virar Museu Manoel de Barros

Escrivaninha, óculos e 43 lápis: escritório do menino que aprendeu a usar as palavras segue como Manoel deixou

Paula Maciulevicius Brasil | 30/04/2021 23:18
"Não saio de dentro de mim nem pra pescar". Frase de Manoel legenda foto da casa 363. (Foto: Marithê do Céu)
"Não saio de dentro de mim nem pra pescar". Frase de Manoel legenda foto da casa 363. (Foto: Marithê do Céu)

A casa de tijolinhos à vista número 363, na Rua Piratininga, que sempre abrigou a poesia das miudezas, vai abrir as portas para que se veja um Manoel de Barros, não só por sua obra, mas também como o avô que foi. É essa a ideia do neto Silvestre Nogueira Barros, de 30 anos.

Herdeiro da casa, Silvestre foi criado ali, ao lado do pai Pedro, já falecido. Engenheiro agrônomo, ele herdou o lado rural do avô e hoje fala da vontade de abrir a casa como museu.

Silvestre Barros, neto que foi criado na casa do avô tem planos de abrir museu. (Foto: Marithê do Céu)
Silvestre Barros, neto que foi criado na casa do avô tem planos de abrir museu. (Foto: Marithê do Céu)

Depois que dona Stella, companheira de Manoel durante 64 anos, morreu em dezembro de 2020, os planos de Silvestre foram, inicialmente, de comercializar o imóvel. "Mas eu tinha muita dó de desfazer de tudo isso aqui que já está montado há tanto tempo. Fiquei pensando no que ia fazer até o dia em que o Pedro me ligou", conta sentado no sofá da sala de Manoel, na mesma posição da estátua do poeta, que recentemente teve o pé furtado.

Melhor amigo de Manoel, jornalista Pedro Spíndola recebeu convite para tirar ideia do papel. (Foto: Marithê do Céu)
Melhor amigo de Manoel, jornalista Pedro Spíndola recebeu convite para tirar ideia do papel. (Foto: Marithê do Céu)

O Pedro a quem se refere Silvestre é Pedro Spíndola, o melhor amigo do poeta. Jornalista, seu Pedro foi a figura com quem Manoel mais falou durante a vida. Frase dita pelo próprio diante dos 10 anos de caminhadas diárias dos dois amigos.

"Eu queria manter a casa, preservar os móveis, a história. Mas eu preciso de alguém importante como você para me dar o suporte que eu preciso", disse Silvestre a Pedro, quem ele conhece desde criança.

Os dois marcaram então de se encontrar na sala onde Pedro e Manoel tanto conversaram. Foi a primeira vez que o amigo entrava no imóvel e encontrava tudo no mesmo lugar deixado pelo poeta.

O sofá onde Manoel se sentava tem um lado que ainda guarda sua presença. A ponta da direita é "funda", sinal da preferência do avô. "A Elisa Lucinda conta que no sofá tem o buraco da bunda de Manoel", sintetiza seu Pedro, hoje com 73 anos.

"Sobre o nada eu tenho profundidades". Na foto, lado esquerdo de sofá é visivelmente desigual. Estofado afundado mostra preferência do poeta pelo cantinho. (Foto: Marithê do Céu)
"Sobre o nada eu tenho profundidades". Na foto, lado esquerdo de sofá é visivelmente desigual. Estofado afundado mostra preferência do poeta pelo cantinho. (Foto: Marithê do Céu)

Questionado sobre quando se deu conta de que o avô era "o Manoel de Barros", Silvestre brinca que ele era um vô normal "como todo mundo". "A gente que morava aqui e quem estava ao lado dele não via essa figura pública que ele era. Eu vi apenas o vô, meu segundo pai, conselheiro e amigo", repete.

A grandeza de Manoel como poeta ficou evidente ao neto em 2007, quando a tocha dos Jogos Pan-Americanos passou por Campo Grande. "Ele foi lá tirar foto com a tocha e acho que só naquele momento, que a gente chegou, a hora que descemos do carro estava aquela multidão gigantesca e só gritavam: 'olha o Manoel de Barros, o Manoel de Barros'. Todo mundo queria abraçar e tirar foto com ele. Foi naquele momento que eu vi o homem importante que ele era", relembra Silvestre, à época com 16 anos.

Na sala da casa dos avós, os quadros que estampam a parede são quase os mesmos desde a fundação, com exceção dos presentes que o poeta ganhava e que também eram pendurados. "Tem réplicas de quadros, ele gostava de Chaplin, tem também quadros da minha tia, artista plástica, Martha Barros", enumera o neto.

Sobre a escrivaninha, os óculos que Manoel usava para enxergar as insignifâncias. (Foto: Marithê do Céu)
Sobre a escrivaninha, os óculos que Manoel usava para enxergar as insignifâncias. (Foto: Marithê do Céu)
"Eu queria ficar mais porcaria nas palavras. Eu não queria colher nenhum pendão com elas. Queria ser apenas relativo de águas. Queria ser admirado pelos pássaros. Eu queria sempre a palavra no áspero dela". (Foto: Marithê do Céu)
"Eu queria ficar mais porcaria nas palavras. Eu não queria colher nenhum pendão com elas. Queria ser apenas relativo de águas. Queria ser admirado pelos pássaros. Eu queria sempre a palavra no áspero dela". (Foto: Marithê do Céu)

A parte da casa onde Manoel mais ficava era o escritório, mais precisamente na escrivaninha. Nela, até hoje, quase sete anos após a sua morte, estão seus lápis. Contados um por um são 43, de toquinhos - aqueles que foram apontados repetidamente até não ser mais possível usá-los - até um único grande, intacto e ainda sem ponta. Manoel só escrevia a lápis.

"Eu queria ser lido pelas pedras. As palavras me escondem sem cuidado. Aonde eu não estou as palavras me acham." - A cadeira onde se sentou Manoel durante todas as manhãs.
"Eu queria ser lido pelas pedras. As palavras me escondem sem cuidado. Aonde eu não estou as palavras me acham." - A cadeira onde se sentou Manoel durante todas as manhãs.

"Ele passava a parte da manhã, de segunda a sexta, passava no escritório lendo, escrevendo e criando", recorda o neto.

Os caderninhos onde eram escritas as poesias e feitos os desenhos ficaram para a filha Martha Barros, a única viva dos três filhos que dona Stella e Manoel tiveram e também a única artista.

Sobre a escrivaninha estão os óculos de Manoel, os mesmos que o poeta usava para enxergar as coisas desimportantes da vida. O neto garante "está tudo original, como ele usava, do jeito que ele deixou". Acima da mesa de escrivaninha, na prateleira, ficam pequenas miniaturas. Uma delas, uma formiga, provavelmente presente dado ao poeta.

Na estante, livros e enciclopédias, exatamente da forma como ele organizou. As únicas pessoas que adentram ali são o neto Silvestre e uma funcionária da casa que segue à risca o sistema do patrão. "Ela já trabalhava aqui antes dele morrer, então conhecia o sistema, sabia que não poderia entrar aqui enquanto ele estivesse", detalha Silvestre.

Pela parede, mais quadros. Entre eles, a fotografia dos pais de Manoel: dona Alice e seu João Wenceslau.

"Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos." (Foto: Marithê do Céu)
"Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos." (Foto: Marithê do Céu)

"Ele era isso. E eu achei que não podia ficar com tudo isso só pra mim, privar as pessoas e transformar aqui num prédio comercial. Porque tudo nessa rua virou comercial... Aqui tem muita coisa, história importante que não precisava ficar só para nós da família", justifica o neto.

A casa foi construída para Manoel e Stella, o projeto é do arquiteto Osvaldo Alves de Siqueira. Com 300 metros quadros de área construída e mais 60 de terreno, o imóvel levou pouco mais de um ano para ficar pronto, em 1984, e nunca passou por reforma.

Fachada da casa construída em 1984, no Bairro Jardim dos Estados. (Foto: Marithê do Céu)
Fachada da casa construída em 1984, no Bairro Jardim dos Estados. (Foto: Marithê do Céu)

"Foi a primeira casa de tijolo à vista de Campo Grande, ele dizia: 'pô, depois que fizemos, todo mundo fez casa assim'", lembra o amigo Pedro.

São três quartos em cima: o que era usado pela filha Martha quando vinha do Rio de Janeiro para Campo Grande; o de Pedro, pai de Silvestre; e o do casal. Quando Manoel e Stella precisaram, os móveis saíram de cena e um mini-hospital tomou conta para dar todo o suporte necessário.

Após a partida deles, a cama retornou ao seu lugar de origem, entre duas mesinhas de cabeceira e dois abajures. Mas o que chama a atenção mesmo é a TV de tubo, de poucas polegadas. "Era essa TV daí mesmo, foi a última que ele assistiu. Tinha outra igual na sala também", comenta o neto.

Em uma das paredes, uma página de um jornal impresso, escrita pela jornalista Laís Camargo, foi emoldurada. Segundo conta Silvestre, logo depois da publicação, mandaram o jornal para a casa de Manoel e dona Stella leu, gostou e emoldurou. Desde dezembro de 2011 ela faz parte da decoração do quarto.

"A minha diferença é sempre menos" - Quarto de Manoel e dona Stella, composto de uma cama antiga, duas mesinhas de cabeceira. (Foto: Marithê do Céu)
"A minha diferença é sempre menos" - Quarto de Manoel e dona Stella, composto de uma cama antiga, duas mesinhas de cabeceira. (Foto: Marithê do Céu)

As roupas foram doadas para o asilo logo após sua morte. Por terem uma ligação com o asilo São João Bosco, o neto conta que fez questão de doar todo o kit hospitalar também.

"Eu sinto bastante falta dele. Vô é o segundo pai da gente", diz Silvestre. Longe da literatura, o neto fala que o que mais aprendeu com o poeta foi gramática. "Ele era o meu professor". Já com o avô, a humildade. "Na parte sentimental, foi a humildade e a honestidade".

A ideia é de fazer da casa onde Manoel viveu os últimos 30 anos um museu e casa de cultura. "Eu quero que as pessoas vejam ou sintam ou tentem sentir que Manoel de Barros não era só a figura literária que todo mundo conhecia. Ele era normal, tinha hábitos, o lugar onde gostava de escrever. Tinha essa casa que era o ninho que ele montou pra vida".

Amigo do poeta, Pedro diz que a melhor coisa que lhe aconteceu na vida foi a amizade com Manoel, iniciada 30 anos atrás. Os planos de eternizar Manoel em um museu já tinham passado pela mente saudosa do jornalista, mas, por acreditar que se tratava de muitos herdeiros, a casa poderia não ser o lugar certo.

"Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios" - Mesa e cadeira de mais de 30 anos, onde poeta sentava com o neto Silvestre para ensiná-lo a desenhar. (Foto: Marithê do Céu)
"Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios" - Mesa e cadeira de mais de 30 anos, onde poeta sentava com o neto Silvestre para ensiná-lo a desenhar. (Foto: Marithê do Céu)

"Aí ele me ligou e culminou com a minha alegria. As pessoas importantes com quem eu tenho falado dizem 'vai dar certo, vai ser bom', mas isso é pouco, a gente precisa de recursos", ressalta Pedro, futuro curador do Museu Casa Manoel de Barros.

"A cadeira ali é a mesma de 30 anos atrás, onde o Manoel sentava, colocava o Silvestre no colo e o ensinava a desenhar", recorda Pedro. Outra lembrança que lhe vem à memória é da sala de jantar, quando, sentado na cabeceira, ao lado de Stella e de Pedro, Manoel se assusta e diz: "Stellinha, já conversei mais com o Pedrão do que com você na vida". A risada do amigo vai ao encontro da saudade.

"Eu sou dois seres. O primeiro fruto do amor de João e Alice. O segundo é letral: É fruto de uma natureza que pensa por imagens..." - Na parede o escritório quadros, em especial dos pais (à esquerda), dona Alice e seu João. (Foto: Marithê do Céu)
"Eu sou dois seres. O primeiro fruto do amor de João e Alice. O segundo é letral: É fruto de uma natureza que pensa por imagens..." - Na parede o escritório quadros, em especial dos pais (à esquerda), dona Alice e seu João. (Foto: Marithê do Céu)

O museu deve abrigar a obra de Manoel e usar da tecnologia para contar a história do poeta. Por ali, o neto até imaginou onde poderia ficar a estátua do avô, a de bronze que teve o pé amputado e furtado na semana passada. "Aquilo já era previsível. Quem não sabia que iam roubar uma estátua de bronze? Até arriscaria dizer que ela ficaria bem aqui na frente, no lugar desse jardim ou aqui dentro, ou até mesmo no sofá", sugere Silvestre.

A estátua, de Ique Woitschach foi baseada no sofá onde Silvestre está sentado durante a conversa. "É uma reprodução deste (aponta para o sofá preferido do avô), mas do tamanho deste", sinaliza.

O projeto do Museu Casa Manoel de Barros ainda está em vias de ser apresentado formalmente ao Governo do Estado, Prefeitura de Campo Grande e também para patrocinadores em âmbito nacional.

"Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria." (Foto: Marithê do Céu)
"Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria." (Foto: Marithê do Céu)


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