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Comportamento

A emoção de quem nunca teve um retrato na vida e ganha foto de um desconhecido

Paula Maciulevicius | 10/11/2014 12:13
Que história terá ele? A gente sempre imagina, do lado de cá, quem é aquela pessoa, o que faz, quem foram seus grandes amores... (Foto: Alcides Neto)
Que história terá ele? A gente sempre imagina, do lado de cá, quem é aquela pessoa, o que faz, quem foram seus grandes amores... (Foto: Alcides Neto)

Há dias que o porta-luvas guarda a sacola com um presente. Um porta-retrato com a imagem de um senhor na labuta, na lavoura, na lida. É uma dessas cenas que na volta de uma pauta a equipe sempre vê ao longe, mas que certo dia resolveu registrar, imprimir e dar a alguém que nunca teve um retrato na vida.

Na foto, o verde da horta contrasta com o marrom da terra. A força que os 69 anos não negam à enxada fazem com que a poeira do solo se levante, como quem quer aparecer na foto. 

No caminho de volta para a redação, a imagem do senhor chama atenção. Sozinho, só ele e a plantação. Que história terá ele? A gente sempre imagina, do lado de cá, quem é aquela pessoa, o que faz, quem foram seus grandes amores e às vezes, até inventamos na imaginação um enredo para aquele personagem.

O registro saiu tal qual a cena do dia. A poeira da terra que se levanta mostrando a determinação de quem põe as mãos na enxada. A foto foi parar no porta-retratos e consequentemente no porta-luvas de quem quis portar felicidade.

Seu Euclides tem 69 anos e o sotaque arrastado que não nega: veio de Pernambuco. (Foto: Alcides Neto)
Seu Euclides tem 69 anos e o sotaque arrastado que não nega: veio de Pernambuco. (Foto: Alcides Neto)

Seu Euclides tem 69 anos e o sotaque arrastado que não nega: veio de Pernambuco. Analfabeto, fala de começo que não sabe ler, porque a mãe e o pai não sabiam e ele, como filho mais velho, saiu igual. Quando pergunto como foi que ele chegou aqui, a resposta é uma só: andando, de dois pés.

Nos anos 60, um tio se instalou em Jaraguari e ele veio vindo, vindo, vindo, até chegar em Campo Grande, onde está há três anos. As últimas cinco décadas já foram em solo de terra fértil, de onde com muito empenho na enxada ele se casou, criou e estudou os seis filhos. Tudo na base da lavoura.

Quem é e o que faz são perguntas nas quais já temos resposta. Quem foram seus grandes amores? Um só, o motivo de ter vindo para a Capital. "Ela adoeceu e no fim, Deus levou ela". Mas para não ficar sozinho de tudo nesta vida, ele arrumou uma companheira. A nova mulher divide a roça, arruma a casa e lhe faz companhia no café. "Para casa de filho, eu não vou e ficar sozinho em lavoura, também não dá", justifica. No fundo, no fundo, penso que seu grande amor na vida seja ela: a terra. "Eu vou tocar roça só até quando eu morrer". Sinal de que só a morte é capaz de separá-lo da enxada.

O terreno onde ele toma conta tem dono, uma senhora da "cidade", que o paga para plantar. Dali ele colhe milho, quiabo e feijão. "Sempre dá, é uma micharia, mas tô ciscando, ficar só sentado é que não dá", argumenta. É convincente, não dá para negar.

"O senhor conhece essa pessoa aí?" pergunta nosso querido motorista Simão Nogueira. Em algum momento, os dois tiveram a mesma vida. (Foto: Alcides Neto)
"O senhor conhece essa pessoa aí?" pergunta nosso querido motorista Simão Nogueira. Em algum momento, os dois tiveram a mesma vida. (Foto: Alcides Neto)

A roça é sua casa, seu serviço e sua atividade desde os 6 anos de idade. Fazendo as contas, nos últimos 63 anos, ele roça desde o amanhecer até o pousar do sol. É uma vida dedicada à terra. "Eu vou vivendo, tenho um ditado que é assim: quem não morre depois de novo, de velho não escapa" e dá-lhe risos.

A infância foi sofrida em Pernambuco, de andar quilômetros para chegar à água. "Aqui é melhor sim, é mais melhor", compara. Já quase na despedida, pergunto o telefone dele. Os números ele também não aprendeu. Diz que quem tem é a mulher, mas ela está longe para ser chamada. Deixo quieto. Vale só o nome de registro: Euclides José Macena.

A casinha onde ele habita, no mesmo bairro que carpe, é no Campo Nobre, simples de tudo. Sem nenhum retrato dele, é a gente quem lhe concede um presente. A foto vem de desconhecidos da longa jornada de seu Euclides.

"O senhor conhece essa pessoa aí?" pergunta nosso querido motorista Simão Nogueira. Do outro lado, seu Euclides responde: "eu estava carpindo lá". A lembrança que Simão lhe quis deixar, fizeram chorar nosso personagem. Euclides da roça, da enxada e dos amores pela lavoura é sensível. "Sou muito fraco", tenta se explicar.

A emoção de quem nunca teve um retrato na vida e ganha foto de um desconhecido é de lavar a nossa alma. Simão Nogueira, dono de um "boa tarrrrrrrrrde" reconhecido de longe não é pernambucano e nem tem sotaque arretado. Mas foi alguém que teve, pelo menos de início, a mesma vida na enxada. "Eu também fui criado igual ele. Meu pai mexia com empreita, quem cuidava da roça era eu e meus irmãos. Eu tinha 8 anos, é por isso que este serviço aqui (de nos guiar no jornalismo e na vida) não me cansa não".

Fomos embora. Felizes, assim como seu Euclides, que disse que mostraria a foto aos filhos, hoje nós mostramos a foto aos nossos leitores. "Boa tarrrrrrrrde", como diz nosso mestre Simão.

Eis a foto do presente: a força que os 69 anos não negam à enxada fazem com que a poeira do solo se levante... (Foto: Marcos Ermínio)
Eis a foto do presente: a força que os 69 anos não negam à enxada fazem com que a poeira do solo se levante... (Foto: Marcos Ermínio)
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