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Comportamento

Com pai morto e irmãs violentadas, restou a luta para kaiowá Valdelice

Mesmo em meio às tragédias, indígena não se entregou e virou a militante que ama, protege e luta pelo seu povo

Raul Delvizio | 23/04/2021 08:35
Valdelice é a kaiowá que fez as palavras "falarem" em busca de ser ouvida (Foto: Reprodução)
Valdelice é a kaiowá que fez as palavras "falarem" em busca de ser ouvida (Foto: Reprodução)

Na mesma semana em que se comemora o Dia do Índio (19 de abril), também é marcada pelo Dia da Terra (22). Em Dourados, Valdelice Veron não só se orgulha por ser a guarani kaiowá que é, mas por ter na sua identidade cultural e ancestralidade a tekoha, isto é, a "terra sagrada" que faz ela e tantos outros povos indígenas serem o que são.

Porém, o que para uns é sagrado, para outros tantos – os "homens brancos" – é questão de posse, dinheiro e poder. E disso ela não foge à luta. Ao presenciar o pai ser morto, irmãos algemados, mulheres violentadas e crianças abandonadas no meio da estrada, Valdelice encontrou coragem, determinação e deixou o medo de lado. E assim, ano após ano, retoma seus valores de guarani kaiowá, de povo originário, de mãe e mulher guerreira que sobrevive em prol dos direitos e vive para morrer – já bem velhinha e deitada numa rede – em sua própria tekoha.

No Voz da Experiência, Valdelice conta um pouco de tudo aquilo que já testemunhou e aprendeu ao lado do pai, o cacique e militante kaiowá Marcos Veron, assassinado em 2003. Hoje, ela que é graduada em Ciências Socias na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e mestra em sustentabilidade dos povos e terras tradicionais pela UnB (Universidade de Brasília, ensina a nós não-indígenas a lição que já deveríamos ter aprendido há muito tempo: ter respeito.

"Meu nome é Valdelice Veron e sou a kaiowá Paí Tavyterã, o que significa 'o povo do centro da terra', ou ainda 'descendente direta do sol'. Sou filha do cacique assassinado Marcos Veron e da matriarca Julia Cavalheira. Ele era líder guarani kaiowá e ela a matriarca e ñandesy, isto é, rezadora. Tenho 18 irmãos e 263 netos que correm no sangue da minha mãe.

Gostaria de compartilhar um pouco sobre lutas. Da minha família, do meu povo, da minha pessoal. Da retomada das terras tradicionais, do sempre foi nosso. Talvez você já tenha ouvido falar da criação das 8 reservas indígenas guarani kaiowá em Mato Grosso do Sul. Uma 'solução' que, na realidade, tira a guarda de todos os povos de seus territórios tradicionais, jogando-os nessas reservas. Ninguém perguntou para nós, povos indígenas, se era o que queríamos.

Só por ser indígena, Valdelice presenciou muitas atrocidades cometidas contra o seu povo (Foto: Arquivo Pessoal)
Só por ser indígena, Valdelice presenciou muitas atrocidades cometidas contra o seu povo (Foto: Arquivo Pessoal)

Eu que sou uma guarani kaiowá posso confirmar: a gente não se esquece do nosso território. De onde realmente viemos. Podem passar anos e anos, mas o nosso tekoha continuará sagrado, mesmo nós estando longe dele. Tekoha não é 'terreno'. É história, memória, ancestralidade. É o modo de sermos quem somos. E isso tudo não é algo para ser esquecido. Então temos o preceito de retomar o que sempre já foi nosso, mas que o homem não-indígena insiste em negar nossa cultura e identidade.

As pessoas têm o costume de dizer que é culpa de ONG ou órgão do governo em incitar a gente a 'invadir', isso não é verdade. Como 'invadir' o que já era nosso? A gente sabe onde é a nossa terra.

Eu comecei a acompanhar meu pai aos 6 anos de idade. Minha primeira retomada foi na Terra Indígena de Pirakua, no município de Bela Vista. Nas retomadas, não tinha idade ou gênero, e toda a comunidade ia junto. Na época, costumávamos rodar os lugares de caminhão, passageiros da velha caçamba. Para mim tudo era uma grande festa, quando andei de caminhão pela primeira vez na vida. Aquele vento no rosto, aquele emoção…

Mas minha mãe me alertava: 'filha, se algo acontecer, você corre, entra no mato e fica agachada. Não sai, não chora, não grita'. Hoje, sou eu quem falo a mesma coisa para minha filha de 10 anos de idade. Então, todos nós íamos, aos poucos, entrando e revezando de volta à nossa terra.

Até que um dia houve uma perseguição. Alguns consideram 'correria', mas eu via aquilo como perseguição. Perseguição do índio vivo… perseguição do índio morto.

Alguns pistoleiros vieram em alta velocidade no encalço da gente. Minha amiguinha na época caiu do caminhão em uma curva e o carro logo atrás simplesmente passou por cima. Eles fugiram, porque o que aconteceu bastava como 'sinal'. Descemos. A índia ainda estava a olhar no meu rosto. Peguei na mão dela, e ela se fechou os olhos. Essa foi a primeira morte que presenciei, mas outras ainda iriam suceder. Minha mãe falou: 'vamos rezar aqui para ela vai ficar bem'.

Registro do seu pai, Marcos Veron, rezando para criança enferma; pouco tempo depois ele foi assassinado (Foto: Arquivo Pessoal)
Registro do seu pai, Marcos Veron, rezando para criança enferma; pouco tempo depois ele foi assassinado (Foto: Arquivo Pessoal)

Em uma ocasião, já tínhamos feito umas vinte retomadas. Meu pai chegou, parou e conversou: 'já retomamos muitas terras. Agora a gente precisa ir para a nossa também, a Terra Indígena Takuara'. Foram várias rezas e reuniões antes disso ser decidido.

Não teve a participação de nenhuma ONG ou órgão federal. Mas, como nas primeiras vezes, encontramos grandes plantações de milho, mandioca, todas espalhadas na Reserva de Caarapó e de Dourados, onde nós estávamos. Conseguimos voltar. Lá, construíram escola, postinho de saúde, casas e roças. Foi uma retomada muito importante, na qual todas as lideranças, os caciques de MS, participaram.

Tudo parecia muito bem, até que chegou o ano de 2001. Foi em 16 de outubro, eu já estava com 8 anos de idade. Na época, não sabia falar direito o português, ler nem escrever. Até o papel do 'homem branco' eu tinha uma resistência. Mas ele veio até a mim, até meu pai. 'Liminar judicial de despejo', algo que nunca tinha ouvido falar. Mas meu pai sabia. Marcou o papel com o dedão e devolveu ao entregador. Meu pai mandou fazer a chicha, que é a bebida preparada para festas. E nós esperamos, em clima de festa, até o dia chegar.

Às 9 horas da manhã do dia marcado, uma escuridão subia na estrada. Era só carro, ônibus, caminhão e caminhonetes pretas. Todo mundo estava armado. Não deu tempo para fazer nada. Queimaram nossas casas, algemaram o cacique – meu pai –, meus irmãos e irmãs também. Foram nos jogando na caçamba. Não restou ninguém.

Eu, ainda criança, não entendi nada. 'Não era pra ser uma festa? E não foi', pensava. Todo mundo ficou aprisionado até umas 7 horas da noite, porque havia muitos guerreiros na mata que não queriam se entregar. E meu pai falou: 'esta não é a nossa vez'. Nos abandonaram na beira da estrada, perto do rio Dourado.

Valdelice conta que muito da sua luta ela deve ao pai, grande professor da vida (Foto: Arquivo Pessoal)
Valdelice conta que muito da sua luta ela deve ao pai, grande professor da vida (Foto: Arquivo Pessoal)

Naquele dia eu chorei muito, mas também recebi uma lição do meu pai que mudou minha vida. 'Você tem que fazer o papel falar, minha filha!'. Como eu vou fazer o papel falar, se eu nem sei falar o português direito? Se eu tenho medo do branco? Se eu temo por minha vida? 'Mas não vou conseguir...', respondi. Ele olhou no fundo dos meus olhos e disse: 'você ainda vai fazer o papel falar. Você vai fazer o papel falar onde todos os doutores vão ouvir', uma referência aos diversos antropólogos – Darcy Ribeiro, Egon Schaden, Antônio Brand e muitos outros – que já passaram pela gente.

Como eu vou fazer o papel falar? Como eu vou falar das minhas divindades, do meu povo, daquilo que nós acreditamos. Daquilo que somos. Como colocar isso no papel, o não-indígena não dialoga com a gente, não quer saber o que passamos?

Em 2003, mais uma vez, voltamos na Takuara. Na madrugada do dia 13 de janeiro, fomos atacados novamente. Sequestraram o meu pai. Pegaram meu irmão, amarraram, queimaram o ombro dele com gasolina. Algemaram meus outros irmãos. As mulheres… violentaram elas na frente dos meus irmãos. Meu pai, como em um último esforço, gritou na língua kaiowá: 'não chorem, não se entreguem. A gente está aqui na luta por terra, vida, justiça e demarcação'. Então, mais de 30 pistoleiros o rodearam, torturaram, atiraram e mataram meu pai e cacique da aldeia, Marcos Veron. Foi ali, em meio aquela tragédia, que não só mataram o velho guerreiro, mas mataram o nosso medo também".

Mudanças – "Meu sonho sempre foi ter minha casinha, carpir a roça, manter o fogo, deitar na rede e esperar meu marido voltar da caça e pesca. Eu não queria estudar. Até hoje, quando eu vejo papel, livro, ainda me dá um negócio na cabeça, na barriga, no cérebro…

Assim como meu pai, minha mãe me dizia: 'você tem que olhar o papel, a caneta, como mais um instrumento de luta para o nosso povo! Eles têm a arma, a bala, e usam para atirar, mas nós também podemos usar esse papel e colocarmos um ponto final. Não tenha medo… seja a linha de frente!'. Nunca me esqueço disso porque me agarrei nessas falas.

Valdelice "está" enquanto professora, mestra e doutora no mundo não-indígena, mas que continua e sempre será a kaiowá Paí Tavyterã, isto é, a "descendente direta do sol" (Foto: Arquivo Pessoal)
Valdelice "está" enquanto professora, mestra e doutora no mundo não-indígena, mas que continua e sempre será a kaiowá Paí Tavyterã, isto é, a "descendente direta do sol" (Foto: Arquivo Pessoal)

Os anos passam e as vontades mudam. Lá fui eu, já com minha filha na cacunda, conhecer, entender e estudar o mundo dos brancos. Consegui passar na UEMS (Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul), na faculdade de Direito.

Claro que não foi fácil. Os professores, a universidade, os alunos, ninguém estava preparado para receber nós indígenas. Uma vez, em uma aula sobre lei da propriedade privada, ouvi de um dito 'doutor': 'esses índios, esses bugres, eles morrem e não sabem o por quê'. Não me aguentei, amassei o papel do texto que estávamos estudando e enfiei na boca dele. Resolvi saí.

Só voltei alguns anos depois, já bastante decidida. Todo dia a gente luta pela vida. Se não nos matam pela bala, pela arma de fogo, tentam matar a gente pelo papel, jogando veneno de cima de aviões, destruindo a natureza. E os fazendeiros riem. Você que está lendo o que escrevo também tem a mão manchada de sangue. Enquanto ser humano, não há remédio que cure ou cicatrize o que vivemos por ser quem somos. Como alguém pode atirar à queima roupa na Xurite Lopes, uma senhora que tinha a idade da minha mãe, no meio dos netinhos? Jogar ali o corpo dela todo ensanguentado? É uma tristeza sem fim, e uma vergonha ser testemunha disso.

Então, por isso e tudo mais, continuei na luta para fazer o 'papel falar'. Fiz graduação em Ciências Sociais, me formei professora de escola indígena, mestra em sustentabilidade junto a povos e terras Tradicionais, ingressei no doutorado em antropologia social. Estou há anos na luta para fazer o papel falar. Tudo que escrevo é verdade e está aí para quem quiser ler. Enquanto permanecer viva, continuarei a documentar e denunciar o que fazem conosco. A nossa luta ontem e hoje é por terra, vida, justiça e demarcação".

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