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Comportamento

Depois de muita empolgação, haitianos começam a se decepcionar com a vida em MS

Naiane Mesquita | 19/07/2015 07:25
Grupo montado pelo médico Jean Daniel tem de 20 a 40 participantes que estudam português em paróquia no Rita Vieira (Foto: Marcos Ermínio)
Grupo montado pelo médico Jean Daniel tem de 20 a 40 participantes que estudam português em paróquia no Rita Vieira (Foto: Marcos Ermínio)

Em uma ruazinha de terra, no salão lateral da Igreja Divino Espírito Santo, no bairro Rita Vieira, um grupo de imigrantes se reúne todos os sábados. Ali, há além de aulas de português, um pouquinho do que foi deixado para trás, o que não foi possível trazer na bagagem ou se perdeu pelo caminho. Entre lembranças de casa, incertezas e desilusões, todos contam as dificuldades e também alegrias de se viver longe das praias paradisíacas, mas inseguras do Haiti.

O sotaque é francês, a língua oficial do país, a pele é negra e o sorriso totalmente contagiante. Nem todos entendem bem o português, mas com paciência a maioria consegue se comunicar, seja por palavras enroladas, gestos ou com a ajuda dos amigos.

Jean Rabel Pittard, 40 anos, é um desses "tradutores". Há quase dois anos no Brasil, ele fala bem português, resultado das aulas constantes e dos empregos que já teve no País. Ele lembra que chegou a Campo Grande em 9 de março de 2014, mas já tinha passado pela República Dominicana, Equador e os estados de Santa Catarina e São Paulo.

"Tinha um irmão que morava em Campo Grande há sete meses. Trabalhei como encanador durante um tempo, mas faz dois meses que estou sem trabalho fixo. A empresa que eu prestava serviço está falindo", diz.

Jean Pittard tem família no Haiti mas está há dois meses sem trabalho
Jean Pittard tem família no Haiti mas está há dois meses sem trabalho

A história se repete com alguns conterrâneos. "Desde que sai de Corumbá no dia 10 de abril não tenho emprego. Trabalhava na construção civil e também como carpinteiro. Antes vivi em Porto Velho, Rondônia. Queremos o que todo mundo quer, trabalhar, pagar as contas, se falta isso não temos o que fazer", explica o jovem Bernard Denord, 26 anos.

A maioria dos veteranos entrou no Brasil pelo meio convencional, de avião. Quem chegou depois acabou se aventurando pela fronteira seca ou caindo nas mãos de coiotes, agente que conduz os imigrantes pelas áreas de fronteira, mediante pagamento. Alourdes Oceus, 33 anos, ainda se lembra do medo e da insegurança de cruzar o Acre dessa forma.

Com um turbante preto enrolado na cabeça, sorriso tímido no rosto e confusa entre o português e o francês, ela está há 8 meses em Campo Grande e trabalha na casa de uma família. "Ficávamos empilhados e fechados no carro. Eles não deixavam a gente ver nada. No Haiti eu era costureira, aqui trabalho em uma casa de família. Gosto de trabalhar lá, sou bem tratada", diz.  De sonho, agora, ela só quer duas coisas. "Trazer meus dois filhos do Haiti e morar em uma bela casa no Brasil", afirma.

Alourdes Oceus, 33 anos, sonha em trazer os dois filhos para morar com ela no Brasil
Alourdes Oceus, 33 anos, sonha em trazer os dois filhos para morar com ela no Brasil

Quem traduz a fala de Alourdes é o médico Jean Daniel Zephyr, 49 anos. Ao lado da mulher, Marisa, ele ensina o português aos conterrâneos há dois anos, quando descobriu o primeiro grupo de refugiados em Campo Grande.

Haitiano, o oftalmologista se formou na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) no início da década de 90 e retornou para a terra natal onde trabalhou até o terremoto de 2010. "Quando voltei comecei a oferecer consultas gratuitas a imigrantes africanos. Um dia, uma dessas pacientes me questionou se eu sabia que tinha haitianos aqui. Não, eu não sabia", relembra.

Daniel não pensou duas vezes. "Eu queria conhecer, conversar, descobrir quais eram as dificuldades, se era falar o idioma, ensinar o que eu sabia", diz. As primeiras aulas foram em uma pastoral da Rui Barbosa, mas com o tempo e os contatos certos, o médico descobriu que a maior concentração de imigrantes estava no Rita Vieira e mudou o local das reuniões.

Médico, Jean Daniel começou com aulas de português e hoje montou um verdadeiro grupo de convivência no Rita Vieira, com festas e comemorações
Médico, Jean Daniel começou com aulas de português e hoje montou um verdadeiro grupo de convivência no Rita Vieira, com festas e comemorações

Com o tempo, Daniel estabeleceu contatos e, por fim, uma professora conseguiu lutar pela inclusão de uma turma de EJA (Educação de Jovens e Alunos) para os haitianos na rede municipal.

Muitos, fazem o curso e outros já até se aventuram em capacitações do Senac. "Quero começar a preparação para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Eu vim para o Brasil para estudar. Muitos aqui querem ficar um tempo, conseguir um pouco de dinheiro, enviar para as famílias e voltar. Eu vim com esse objetivo de estudar. Mas é muito difícil, muita burocracia para tudo", acredita Wadner Absalon, 26 anos, que acabou de se formar em manutenção de computadores e fala um português ótimo.

Para eles, a propaganda que os próprios haitianos fizeram do País não se mostrou verdadeira com o passar dos anos. "Quem chegou antes falava muito bem do Brasil, que tinha muitas oportunidades, que ganhava dinheiro, mas agora está piorando cada vez mais", diz Jean Pittard.

Salão da Paróquia Igreja Divino Espírito Santo é o ponto de encontro dos haitianos
Salão da Paróquia Igreja Divino Espírito Santo é o ponto de encontro dos haitianos

Até o futebol vira chamariz para conhecer o Brasil. Alexandre Renold, 40 anos, chegou há três meses, e só cruzou a fronteira porque ficou encantado com as imagens da Copa do Mundo de 2014. "Meu sonho era o futebol. Assistia pela televisão, via as belezas naturais, fiquei curioso, estou em busca de oportunidades", diz, ainda em francês.

Muitos, já tentam conquistar um pouco de dinheiro para voltar a terra natal. Com três filhos e mulher no Haiti, Jean é um deles. "Aqui é muito difícil comprar uma casa, uma moto, montar um negócio. Muita burocracia. Preciso mandar dinheiro para casa, mas até juntar para voltar está difícil", reafirma.

Para quem trocou de país, tudo é novidade e desafio. Do trabalho à comida, eles são unânimes no que mais sentem falta do Haiti. "Lá tem mais pimenta. Nós somos mais quentes", brinca Wadner.

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