ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  19    CAMPO GRANDE 19º

Comportamento

Em viagem à África, médica campo-grandense descobre o quanto foi ajudada

Thailla Torres | 09/03/2017 07:45
A médica Dorinha segurando nos braços a pequena Dorinha que nasceu no dia 5 de março. (Foto: Arquivo Pessoal)
A médica Dorinha segurando nos braços a pequena Dorinha que nasceu no dia 5 de março. (Foto: Arquivo Pessoal)

Os olhos de Maria Auxiliadora Budib, 46 anos, brilham cada vez que fala da profissão. Exercendo a Medicina há 23 anos por amor, ela decidiu dar um novo passo neste ano, depois de aceitar o convite de amigos para uma temporada voluntária em Moçambique, no continente africano. A viagem trouxe a Maria um contato impressionante com as mulheres de aldeias distantes e em situações de vulnerabilidade no país. O relato sobre a transformação na vida, Dorinha, como é conhecida, conta aqui no Voz da Experiência.

"Tive a felicidade de ser convidada por amigos a ser madrinha de uma criança na África, onde um grupo de brasileiros faz trabalho voluntário em aldeias distantes. Grande parcela das crianças é órfã e vive em condições de risco. Desde 2009, o Wagner Moura Gomes desenvolve aqui um projeto social lindo e de impacto na qualidade de vida dos moradores locais. São 8600 crianças em 22 aldeias. As caravanas de saúde acontecem várias vezes ao ano e há atendimento médico e odontológico voluntário. Nenhum de nós, caravaneiros, recebe algum tipo de ajuda, viemos até aqui para contribuir na edificação de um sonho: ser um só coração.

Sinto que ela está ligada à mim e serei sua madrinha de vida.
Sinto que ela está ligada à mim e serei sua madrinha de vida.

Por isso, fiz o propósito de vir pela primeira vez e agora sei que não será a única. Fico no país até dia 11 de março e pude descobrir o quanto somos seres em constante evolução.

Nesta semana, enquanto fazíamos visita domiciliar aos idosos da região de Matuba, uma senhora estava em primeiro período pós-parto. Coincidência ou não, eu estava passando junto com o grupo, e como sou obstetra, prestei os primeiros cuidados.

Foi emocionante ver seus outros 5 filhos ao redor e quietinhos enquanto ela, com sede, fome e dor, mostrava-se como sobrevivente e sabedora dos conhecimentos ancestrais. Tinha uma corda amarrada ao ventre e passou muita coisa pela minha cabeça. Pensei no Brasil, no meu ambiente de trabalho, nos protocolos de segurança para garantir todos os passos necessários e eu ali, assistindo a mãe natureza agir e vendo aquela mulher na resiliência absoluta da maternidade.

Quando o bebê estava no seio, após termos acolhido a mãe, ela me olhou e disse "wuemah" que significa qual seu nome em xangana, o dialeto africano e eu respondi "Dorinha" que é meu apelido. Nessa hora ela disse que aquela bebê teria meu nome e doçura. Na hora chorei muito, foi a linguagem do amor e da identificação de duas mulheres, que reconheceram uma na outra a força da solidariedade.

Senti naquele momento que eu a ajudei e ela me ajudou. Entrei em um túnel da ancestralidade e reconhecimento ali como minha vocação, do quanto a obstetrícia é milenar... Nós mulheres carregamos conosco essa força descomunal da reprodução e isso é uma bênção sem tamanho.

A Dorinha de Moçambique nasceu dia 5/3 e eu sou do dia 6/3. Sinto que ela está ligada à mim e serei sua madrinha de vida, como sou de outras crianças aqui. Agora só desejo a ela oportunidades de vida, crescimento e de amor.

Mãe moçambicana com a filha Dorinha nos braços. (Foto: Arquivo Pessoal)
Mãe moçambicana com a filha Dorinha nos braços. (Foto: Arquivo Pessoal)

Eu vi o quanto as mulheres daqui sabem ouvir o divino feminino que a ancestralidade nos empodera. As vezes somos muito cultas, lemos livros médicos sobre o parto, mesmo não sendo da área, assistimos partos no YouTube, nos canais fechados e, embora com toda essa bagagem de informação, não reconhecemos nosso corpo e a dor que se faz necessária. Minha percepção daqui é que elas são preparadas internamente ao parto, tanto que essas crianças estavam presentes ao redor naquele momento, é um conhecimento adquirido.

Esse foi um dos tantos momentos emocionantes. Desde que me entendo por gente, queria ser jornalista e me especializar em assuntos de guerra do Oriente Médio, pois sou de família libanesa pelo lado paterno. Mas quando pequena, até meus professores me olhavam como médica. Na escola eu cuidava das amiguinhas doentes, eu sabia uma forma de aliviar dor quando elas caiam na atividade física, impedia aquelas que tinham asma de se cansar e levava outras para enfermaria da escola para um curativo. Foi aí que resolvi escutar a voz interna e a Medicina me fez sua discípula

Graças à profissão, cheguei a esse momento impressionante. Aqui, quando chegamos, centenas de crianças e mulheres nos receberam em festa, com os olhos repletos de amor e gratidão. Na hora, apesar de estar sendo fisicamente minha primeira vez, eu sentia como se estivesse sendo bom rever todos. É uma sensação de estar em uma corrente do bem plena.

Essa Maria que está aqui é a Maria que nasceu assim e que a vida fez atravessar vários desertos e vários oásis. Saio da África fortalecida com meus valores, com a prática da troca, da ajuda mútua e da música que enobrece a rotina difícil dos moçambicanos. As mulheres moçambicanas, das aldeias são solitárias, são fortes e encantadoramente musicais. O afeto transborda aos olhos e eu que achava que viria para ajudar, descobri que na verdade eu fui ajudada.

Curta o Lado B no Facebook.

Nos siga no Google Notícias