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Comportamento

Na semana que aborto voltou ao debate, quem já fez 2 cobra o direito de decisão

Naiane Mesquita | 10/12/2016 07:56
Mesmo clandestino, jovem encarou os procedimentos pelo direito de ter escolha (Foto: Fernando Antunes)
Mesmo clandestino, jovem encarou os procedimentos pelo direito de ter escolha (Foto: Fernando Antunes)

Aos 22 anos, Carla* deitou pela primeira vez na maca de uma clínica de ginecologia e obstetrícia de Campo Grande para um aborto. Em processo de separação, com uma filha pequena, ela entrou em pânico ao descobrir a gestação, mesmo tomando anticoncepcional injetável de três em três meses. Sem anestesia, ou qualquer tipo de conforto ou ajuda psicológica, ela sofreu sozinha a dor de antes, durante e depois de um momento que a jovem chama de "quase parto".

Depois que tudo terminou, o médico ainda a obrigou a ver o resultado do procedimento, o embrião. "Ele perguntou se eu gostaria de ver o feto. Na época, eu estava com dois meses de gestação. Eu disse que não, mas ele falou que era importante. Eu deveria ver para não ficar com aquela coisa que eu estava tirando uma vida. Eu vi e aceitei. Na hora eu não entendi muito o que ele queria com aquilo", relembra.

O procedimento custava em 2002 cerca de R$ 500,00, o que não era nem um pouco barato para os recursos que ela dispunha. Para conseguir fazer, Carla mentiu para o marido e disse que precisava de dinheiro em razão de um problema de saúde. O aborto acabou realizado na clínica convencional e não na clandestina que mesmo ginecologista mantinha.

Carla formou em direito e segue com os três filhos (Foto: Fernando Antunes)
Carla formou em direito e segue com os três filhos (Foto: Fernando Antunes)

Com o coração disparando e o medo de morrer na mente, Carla precisou enfrentar tudo para conseguir um direito que para ela deveria ser básico. "Eu senti dor durante o procedimento e precisei ficar quieta. Não podia fazer barulho porque ninguém na clínica sabia o que estávamos fazendo, nem as secretárias dele. Eu tive que aguentar tudo sozinha, a dor na hora e depois", relembra.

Mesmo em casa, com o filho pequeno e a cólica que aumentava, o arrependimento não apareceu. "Meu ex-marido desconfiou, tentou me acusar, mas nenhum momento eu senti culpa. Tem mulher que entra em depressão, chora, eu não tive isso. Eu achei que fosse um direito meu, até porque a parte mais pesada fica para a mulher. Eu tenho o direito de decidir o que eu quero ou não", acredita.

Esse direito foi discutido com afinco nas redes sociais nesta semana após a decisão do Supremo Tribunal Federal de que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime. O entendimento dos ministros se refere a um caso específico, um habeas corpus que revogou a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto na cidade de Duque de Caxias (RJ). Nenhuma mulher que praticou aborto na clínica foi denunciada.

A decisão não tem caráter de descriminalização do aborto, mas abre precedente para que o argumento seja utilizado por juízes em situações que envolvam aborto até o terceiro mês de gestação. O debate também cai como uma luva depois da morte de uma jovem na cidade de Porto Murtinho. provavelmente devido a complicações durante um procedimento de aborto clandestino. A suspeita é que a menina tenha ingerido um medicamento abortivo.

Carla, 36 anos, já fez o mesmo, no segundo aborto que realizou na vida, cinco anos atrás, quase uma década após a primeira vez.

"Eu conheci uma outra pessoa, me envolvi com ela e não tomava nenhum tipo de medicamento. Na época, ele me falou que havia se submetido a uma vasectomia e eu acreditei. Pensei que era de novo do meu ex-marido. Estava recém separada e fiquei grávida", relembra.

Com o processo de separação em andamento e apenas um mês de gestação, ela optou por um medicamento abortivo. Na fármacia indicada, com o farmacêutico recomendado por mulheres que fizeram o mesmo caminho antes, Carla arriscou a vida pela segunda vez.

"Eu comprei e paguei pelo remédio R$ 480,00. Senti uma cólica forte e desceu normal, como uma mestruação. Não senti nada, mas fui instruída que poderia ter uma hemorragia, alguma coisa", diz.

Diferente da primeira vez, ela nem olhou o que saiu de si. Com segurança, aceitou que esse era o melhor caminho.

Meses depois, grávida novamente, viu que o namorado mentia sobre a infertilidade e que a segunda gravidez não era do ex-marido. "Me arrependi do aborto, não pelo ato em si, mas por descobrir que era dele", explica.

Mas o pior veio em seguida. "Ele pediu para eu tirar a criança. Chegou a comprar o remédio, mas eu não tomei. Eu queria a neném, não por arrependimento do que eu fiz, mas porque eu a queria. Sempre tive medo de ter um filho rejeitado pelo pai. Isso acabou acontecendo, mas eu encarei e estou encarando até agora", declara, decidida.

Mãe de três filhos, solteira e com o ensino superior concluído no curso de Direito, Carla só espera que um dia a mulher possa decidir sobre o destino e o próprio corpo sem dor ou humilhação.

"Se eu tivesse as crianças eu teria criado da mesma forma, não sei. Mas acho melhor assim do que recebê-la com rejeição, eu poderia não ser uma boa mãe. Meu filho mais novo não tem um pai presente, acho que de certa forma ele o abortou. Existe uma diferença grande de tratamento. Isso que eu acho errado. Você colocar no mundo para passar por isso. A única coisa que queremos é um meio legal e seguro para exercer o nosso direito", cobra.

* Nome fictício para preservar a identidade das personagens. 

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