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Com horta no quintal, casal planta tudo e compartilha o que colhe com vizinhos

Na contramão da era moderna, Odete e José cultivam um verdadeiro sítio dentro da cidade e dividem o que colhem com quem tem necessidade.

Gustavo Maia | 02/01/2019 09:02
José e Odete cultivam de tudo um pouco no fundo do quintal. Para eles, vender o que colhem nunca foi uma opção. (Foto: Gustavo Maia)
José e Odete cultivam de tudo um pouco no fundo do quintal. Para eles, vender o que colhem nunca foi uma opção. (Foto: Gustavo Maia)

Viver na cidade não é muito tranquilo: correria pra todo lado, todo mundo sempre com pressa, gente trabalhando, estudando, carro pra lá e pra cá, internet, escola, lanchonete, hospital, acidente, e toda essa loucura que é a frenética vida urbana, que não para nem durante a noite. E nesse corre-corre, muitas vezes a gente vai perdendo a conexão com oo outro, a capacidade de perceber as necessidades das pessoas. Mas sempre tem alguém para desafiar a lógica moderna. Aos 72 anos, José Gomes e a esposa Odete Gomes, de 65, criaram um sítio dentro da cidade, e o melhor, compartilham tudo o que colhem com os vizinhos.

Eles sempre moraram em sítio, em São Paulo, no Paraná e em Glória de Dourados. Quando vieram para Campo Grande e finalmente saíram do sítio, o sítio não saiu deles. “A gente faz de conta que mora na roça”, justifica José.

O casal encara uma jornada de trabalho que exige disposição. A lista do que eles cultivam no quintal quase é maior do que a lista de coisas que geralmente vemos nas feiras pela cidade. Tem feijão, milho, mandioca, abóbora, cebolinha, couve, mamão, limão, alface, manjericão, banana, café, fava, quiabo, chuchu, colorau e outras plantinhas que não servem pra comer mas eles cultivam mesmo assim.

Apesar da idade, dona Odete diz que não pretende parar com o cultivo. “Minha filha sempre quando vem aqui diz ‘mãe eu nunca vejo a senhora e o pai descansando, a senhora nunca para’. Mas com essa idade que a gente tá, se a gente parar a gente morre”, conta ela, que só sai do seu pequeno sítio quando é extremamente necessário e não faz a menor questão de conhecer o resto da cidade. “Eu não saio daqui por nada. Meus filhos eu visito uma vez por ano, se eles me buscarem. Não deixo meu cantinho. O centro eu não sei nem como é, se me soltar lá eu fico perdida”, brinca.

Dona Odete é modesta: "a gente planta algumas coisinhas". (Foto: Gustavo Maia)
Dona Odete é modesta: "a gente planta algumas coisinhas". (Foto: Gustavo Maia)

Mas o terreno todo não é do casal. Dona Odete explica que na verdade são três terrenos - o deles, o de uma sobrinha e o do vizinho, que deixou a terra aos cuidados deles - onde seu José cultiva uma pequena roça de milho, feijão e mandioca. Com dificuldade para ouvir o que digo, ele explica que a audição já não está muito boa e prefere encarar com bom humor o que para muitos seria motivo de tristeza. “Conversa com ela, porque eu já não escuto bem, sou quase surdo. A não ser que alguém diga ‘quer um bolão de dinheiro?’ aí eu escuto bem”, brinca José.

Antes de vir para Mato Grosso do Sul, o casal morou seis anos no Paraná, onde trabalhava numa roça de algodão. Na época, eles já tinham horta em casa e a mão de Dona Odete era tão boa para o cultivo que às vezes ela acabava trocando verduras com o vizinho, dono da horta que abastecia os mercados da cidade. “Esse nosso vizinho tinha uma horta grande, plantava de tudo. Ele plantava pra vender, mas às vezes as minhas verduras ficavam mais bonitas que as dele, daí a gente trocava. No meu quintal tinha repolho, almeirão, cebola, alho, tinha um pouquinho de cada”.

José ensina que o que faz suas plantas crescerem e ficarem bonitas é o cuidado. “A gente planta de tudo aqui, não é só verdura. E tudo que a gente planta aqui, do nosso jeitinho, cresce. O segredo é cuidar”, revela ele. Dona Odete diz que hoje em dia quase não faz compras no mercado, porque a maioria do que consomem, plantam no quintal de casa. “O que a gente compra no mercado é só açúcar, arroz, sal, óleo, essas coisas. O resto tudo a gente colhe daqui, até o café. Aqui nesse quintal a gente já criou galinha, pato, peru, mas a gente não aguentou criar porque os bichos davam mais despesa que a gente”, diz.

Apesar da saúde debilitada, José diz que se sente bem por conseguir trabalhar aos 72. (Foto: Gustavo Maia)
Apesar da saúde debilitada, José diz que se sente bem por conseguir trabalhar aos 72. (Foto: Gustavo Maia)

Hoje, o casal se mantém com a ajuda dos filhos e a aposentadoria de José, que conseguiu o benefício quando perdeu a visão do olho esquerdo, “mas gasta quase a metade comprando remédio”. Já dona Odete, apesar de ter trabalhado a vida inteira, tanto no campo quanto na cidade, ainda não conseguiu se aposentar. Além de cuidar da própria casa, da horta e da roça, ela ainda cuidava da casa de outras pessoas, trabalhando como diarista, mas para cuidar do esposo teve que deixar o emprego. José ainda se admira com a determinação de Odete, que ia à pé do bairro Portal da Lagoa até o Coophasul, onde trabalhava.

Ela, que sente vergonha ao dizer que não sabe andar de ônibus, conta que saía de casa às sete da manhã, passava por dentro de uma mata, cruzava os bairros Vila Neuza e Vila Marli para poder trabalhar, e só voltava no fim da tarde, pelo mesmo caminho. “A gente tem que lutar pela vida, né? Para não depender de ninguém. É melhor a gente trabalhar do que roubar”, analisa ela.

Apesar de tudo, eles dizem que vender o que cultivam nunca lhes passou pela cabeça, e que preferem doar enquanto têm condições. “Eles vêm aqui no portão com dois reais na mão querendo comprar, eu dou as verduras pra eles mas digo pra eles levar o dinheiro também, que eu não quero vender não. Deus deu pra mim, então eu também posso dar pros outros”, acredita Odete.

“De vez em quando eu ando por aqui pelo bairro e vejo tanta criança de umas família sem muitas condições, eu volto com meu coração partido. Por que que essas famílias não aproveitam o quintal para plantar um pezinho de feijão, de quiabo, qualquer coisa, né? Já era uma mistura pra refeição dessas crianças. Dizem que criança não gosta dessas coisas, mas às vezes é porque nunca comeu. Sempre vem criança aqui em casa e eu dou quiabo, dou chuchu, eles saem de barriga cheia. E eles perguntam ‘tia o que é isso?’, eles não sabem”, lamenta ela.

No quintal deles tem até um pé de coité, uma planta que não serve pra comer, mas Dona Odete fez questão de plantar pelo significado especial. A árvore a acompanha desde quando ela e José namoravam, ainda na cidade de Glória de Dourados. “O coité fica uma árvore grande e dá umas cabaças, umas “bolas” bem grandonas, que eu não sei como não cai do galho. A primeira vez que eu vi, foi na casa do pai dele quando a gente se conheceu. Eu não sabia o que era aquilo, fiquei pensando que era um tipo de melancia de árvore”, diz ela, rindo. Ela conta que a tal “melancia de árvore”, que ela descobriu se chamar coité, chamou tanto a sua atenção, que ela fez a promessa: “quando eu me casar, vai ter um pé de coité no meu quintal. Dito e feito: todo canto que a gente mora tem um pé de coité. Esse pezinho aí veio de Rochedo e eu plantei esses dias”, conta ela.

Horta de cebolinha de Dona Odete. (Foto: Gustavo Maia)
Horta de cebolinha de Dona Odete. (Foto: Gustavo Maia)
José mostra sua roça de milho, feijão e mandioca. (Foto: Gustavo Maia)
José mostra sua roça de milho, feijão e mandioca. (Foto: Gustavo Maia)
Eles têm até café no quintal. (Foto: Gustavo Maia)
Eles têm até café no quintal. (Foto: Gustavo Maia)
Pé de coité, que acompanha Dona Odete. (Foto: Gustavo Maia)
Pé de coité, que acompanha Dona Odete. (Foto: Gustavo Maia)

José conta que eles não tiveram a oportunidade de estudar, quando criança, e tiveram que aprender desde cedo a viver do seu próprio trabalho. “Aquele tempo era um tempo atrasado. Meu pai dizia que escola de moleque era cabo de enxada. Naquela época os fazendeiros não aceitavam os filhos dos empregados estudarem, mas os filhos deles estudavam”, lembra ele, que ainda chegou a estudar algum tempo no antigo Mobral, sem concluir os estudos. Já dona Odete, nem chegou a entrar numa escola. “Com sete anos de idade a gente já ia pra roça com meus pais. Pra você ter uma ideia, eu só fui sair do sítio onde eu nasci, depois de 14 anos”, conta ela.

Odete lembra que aprendeu desde a infância a compartilhar com o próximo o que tem, gesto que hoje está cada vez mais raro. “Eu me sinto honrada por poder fazer isso, uma coisa que eu via minha mãe fazendo quando eu era pequena e ficou gravada na minha mente. Naquele tempo tudo que a gente tinha em casa a gente dividia com quem precisava: amendoim, feijão, arroz, tudo. Tinha vez que a gente matava porco e repartia com os vizinhos. Hoje em dia não tem mais nada disso. As pessoas não conhecem nem quem mora do lado de casa”, compara ela. Seu José diz que ninguém vive sozinho no mundo, e que aprender a conviver é um exercício cotidiano. “É aquela história: hoje eu tô bem e o vizinho tá bem, mas amanhã ninguém sabe. E não pode procurar as pessoas só quando a botina aperta, tem que ter amizade com todo mundo”, considera.

Orgulhosos eles dizem que estão sempre com a casa cheia. Quando não são os filhos com os netos, são os vizinhos, que para eles são quase membros da família. “A gente não vive no mundo sem vizinho. Tem vizinho que eu considero como se fosse um filho. Esses dias um vizinho viu a gente carpindo aqui, até veio ajudar ‘a senhora ajuda tanto minha mãe, dando verdura quando ela não tem dinheiro pra comprar’, ele falou. Meus filhos vêm com a família, aí eu faço um cural, um bolo, uma pamonha. Eles falam ‘não dá nem vontade de ir embora, mãe’, então aqui em casa a gente nunca tá só”, diz ela.

E quando o assunto é tecnologia, eles preferem passar longe: “nem carro a gente tem”. Internet então, nem se fala. Mas como ninguém é de ferro, a televisão está na sala da casa. Mesmo assim Odete diz que não tem tempo para essas coisas, “minhas filhas falam alguma coisa das novelas, eu não sei nem pra onde vai esse negócio”, brinca ela. José diz que só assiste TV por causa do jornal.

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